"Conturbados e violentos tempos eram aqueles" - Lamentou Aristides.
Encostado a uma grande cruz de pedra fazia um pequeno intervalo descansando, a cerimónia fúnebre tinha acabado e tapava agora o resto da cova.
Folheava um jornal com arrogância, como se querendo vingar das sucessivas ondas de violência lidas de folha para folha. Já tinha visto de quase tudo. Virava uma folha, assassinos em série; outra folha, violações; outra ainda, pedofilia, assaltos, seguindo-se esquartejamentos de aldeias inteiras em países de terceiro mundo. Aquilo tudo enojava-o, dava-lhe náuseas. De vez em quando tinha mesmo de desviar o olhar das fotografias aberrantes que dançavam como demónios nas folhas do jornal.
Nada que não estivesse habituado a ver todos os dias claro. Uma pessoa ficava de dia para dia cada vez mais insensível a este tipo de noticias, mais frio, tinha-se tornado tão vulgar como sair da cama, tomar um duche e lavar os dentes.
Mas hoje havia algo que lhe chamara especialmente a atenção ao ler os títulos. Algo que lhe dera um arrepio frio na espinha e lhe tocara mais no seu intimo. Virou finalmente a página cinco e lá estava, em letras gordas: «LOUCURA NO CEMITÉRIO - Vaga de mortes, crimes e aberrações assolam vários cemitérios do país.»
"Porra, nunca tinha ouvido tal coisa antes" - exclamou. - "Raios".
Uma página inteira dedicada a quatro casos no mínimo escabrosos. Mas onde iria isto parar? Agora até nos cemitérios? De loucos!
Todos tinham como foco de noticia os coveiros dos respectivos cemitérios. Situações de província, ao menos isso, todos tinham acontecido em lugares remotos longe do seu cemitério na grande cidade, vá lá, não fosse a moda pegar.
A primeira situação dizia respeito a um assassínio por avareza de um tio pelo sobrinho. Por um lado Aristides até entendia o móbil do crime, nos dias que correm é raro encontrar um coveiro ganhar algo de minimamente razoável. Neste caso, o tio, dono da agência funerária local, aproveitara-se do trabalho árduo do sobrinho pagando-lhe uma ninharia enquanto fazia fortuna com a profanação posterior de túmulos recentemente sepultados. Lógico que isso não justificava a situação, afinal, assassínio é assassínio. O raio do homem tinha rachado de alto a baixo a cabeça do tio com uma pá, logo seguido de decapitação por puro prazer, por vingança de anos acumulando ódio. Enterrando-o escondeu um enorme cofre com os lucros profanatórios armazenados ao longo de anos a fio. O plano até que fora bem executado, o tio tinha sido dado como desaparecido e o coveiro com o pesar nos olhos lá fizera o sacrifício de ficar com a gerência da funerária. A policia até que desconfiara um pouco mas sabe-se como é, nestas terriolas a acção da policia é de deixar passar a banda, não estão para ter trabalho com esse tipo de investigações. O azar batera-lhe à porta seis meses depois aquando do desenterro do recheado cofre, duas crianças testemunhas e assustadas alertaram um policia que passava por acaso perto. O raio do coveiro ia ser internado num hospício para o resto da vida. Bem feito.
A segunda noticia era um caso crónico de canibalismo, horrendo.
- Canibalismo?! - Revoltou-se fazendo uma careta. - C'um caraças, canibalismo num cemitério. Comer pessoas já é doentio, agora comê-las já enterradas e em decomposição? Inconcebível!
Ainda mais mal disposto ficou com o desenvolvimento do texto. O tipo tinha feito aquilo umas quarenta e tal vezes. Esperava por altas horas da madrugada, desenterrava as vitimas, desmembrava-as e desatava a fazer um verdadeiro festim em churrasco. Que loucura, insanidade ou obra do demónio levaria uma homem fazer algo como isto? Quarenta piqueniques sem ninguém dar por ela, até o anormal ter adormecido empanturrado e acordado com a catana que usava espetada entre as costelas, a barriga esventrada com a pá. Apanhado pela esposa da defunta refeição morrera como um porco morre na matança. Bem feito novamente.
Engoliu em seco. Fez uma pausa, custava-lhe continuar a ler aquelas aberrações.
Começou a ler a próxima: um outro coveiro tinha sido encontrado feito em pedaços pelo que parecia ter sido um ataque de ratazanas. Os investigadores não tinham chegado a uma conclusão que fosse, porque raio os roedores agiram de tal forma, se é que tinham sido mesmo roedores, as únicas provas eram as dentadas no que restava dos restos do pobre homem e as incontáveis marcas das patas dos animais espalhadas por todo o cemitério. Uma coisa era certa, pelo número das marcas, poderiam ter sido milhares de animais. Convergiam todas elas da capela encontrada de portas abertas. O curioso é que o único rato que descobriram no local era um que se encontrara morto cortado a meio, entre duas lápides caidas. aparentemente o coveiro era de uma competência febril e tinha horror a qualquer tipo de imundisse. A sêr verdade vá-se lá sequer imaginar o pesadelo do pobre coitado. Havia uma testemunha, o ajudante, infelizmente o rapazito era desequilibrado e não dizia coisa com coisa. Só repetia continuamente algo sobre ratos bonitos e amigos, como gostava deles, totalmente aéreo, deve ter ficado assim com o choque.
A última noticia era a mais intrigante de todas. O coveiro desse cemitério tinha desaparecido por completo. Era um tal de Joseph Tutu Basille, 47 anos, 1 metro e 95, negro emigrante das Antilhas francesas. Ninguém o conhecia muito bem nem mesmo como ali chegara. Bem, parecia simplesmente que um terramoto passara no cemitério. A terra dos túmulos tinha sido elevada e revolvida por alguma força que não se compreendia como ou o quê o teria feito, uns falavam de uma escavadora talvez, mas não havia quaisquer marcas no local, era realmente estranho. A fotografia do jornal mostrava blocos completos de terra meios metidos nas covas meios de fora, outros totalmente de fora, quebrados em blocos mais pequenos. Campas e lajes de marmore desfeitas em cacos, parecia algo saído da mente de Dante, ao quadrado. A policia estudara o caso mas acabava sempre em becos sem saída. Fora encontrado um rapazito inconsciente no local, Cristóvã... não, Crisóstomo qualquer coisa, as letras no jornal encontravam-se esborratadas. O rapaz não se lembrava de nada e respondia sempre a sorrir como se tivesse acabado de receber um presente pelo natal. Mais estranho ainda era que o resto do povo da pequena vila comportava-se da mesma maneira, felizes como tudo, e esses nem tinham assistido ao que acontecera. Via-se na fotografia algumas pessoas sorrindo a um canto, algo surreal que não encaixava naquela paisagem completamente virada do avesso. Seria de esperar umas feições pesadas, espantadas ao menos, com lamento esculpido nelas perante algo tão profanatório e sem sentido, não? Não. Paz, em sua plenura. O desenrolar da noticia acabava numa série de teorias de como o coveiro teria desaparecido. Nenhuma delas sem algum sentido.
Aristides soltou um suspiro. O mundo ficava cada vez mais louco e essa loucura chegava agora até ao seu mundo.
- Onde vamos nós parar?! Onde? - questionou em voz alta, abanando a cabeça.
No fundo da página vinha um texto de análise com opiniões de dois peritos na área da psicologia e um qualquer representante religioso. Os psicólogos desdobravam-se em tentativas de explicações de comportamentos extremos e tresloucados dos sujeitos da primeira e segunda noticia, sem muito sucesso. O teólogo arranhava as histórias em conjunto culpando os média e o sensacionalismo de toda aquela parafernália, não tocando sequer no assunto própriamente dito.
-Bah! Não dizem nada de jeito. Só fazem é pior! - Culpou-os.
Pôs-se a questionar se aquilo tudo não seria um mero acaso. Sim, porque não? Durante anos que não acontecera nada deste tipo em sítios sagrados como cemitérios, pelo menos que ele soubesse.
Seriam os sinais dos tempos? Bem, também não interessa, o que importava é que ler noticias de violações ou assassínios já era frustrante, agora este tipo de violência nos cemitérios deixava-o numa tristeza e numa amargura... manchava o bom nome da profissão. Bem, tinha é deitar isso tudo para trás das costas e continuar a vida dele. Ainda tinha muita terra para cobrir a cova.
Dobrou o jornal em dois e pousou-o em cima duma campa. Pegou na pá e na M-16 que jazia ao seu lado. Verificou a arma que anteriormente tinha encravado, já não as faziam como antigamente, pousou-a em cima do jornal. Olhou em redor para o monte de corpos trespassados vezes sem conta e espalhados em redor da cova. Todos vestidos de luto agora manchado por nódoas vermelhas espessas.
Procurava aquele que sobrevivera por causa da M-16 encravada. A última bala tinha-se alojado no abdomen e o homem gemia arrastando-se lentamente, tentando fugir. Chegou perto dele por trás e empunhando a pá desferiu um golpe certeiro no crânio matando-o instantaneamente. Voltou-se arrastando o corpo por um braço.
Suspirou.
Sim, ainda tinha muito trabalho pela frente.
05.12.97
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