Fikções, opinadelas e cenas que tais: Crónicas de coveiros: "2. Fome"

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Crónicas de coveiros: "2. Fome"

"Fracos são aqueles que não libertam a sua alma" - misticulava Recândido.

Recândido Luís Zacarias era seu nome completo. Coveiro de profissão, com muita honra. Levava em cima já 43 anos e a bonita fatia de 24 nesta árdua mas digníssima actividade. A pá era uma das poucas companhias que tinha. Nunca se tinha casado nem pensava fazê-lo. Pra quê? Chatices já as tinha que chegasse, não, nem pensava fazê-lo. Por muito que lhe azucrinassem a paciência, era feliz assim.

"Grandes são aqueles que olham na escuridão e vêm a luz..." - tornou a pensar. Sentado no caixão semiaberto, revirou a manga esquerda da camisa.

- Quatro menos um quarto, hmm, ainda tenho bastante tempo - murmurou em voz baixa enquanto carinhosamente contornava com o dedo o seu velho mas fiel Timex.

Esticou um pouco as pernas e atiçou com um galho a pequena fogueira que alegremente brincava à sua frente. As labaredas dançavam num ritmo inquieto proporcionando um espectáculo único de sombras em movimento no monte de terra que ali se erguia. Recândido fixou as sombras, quase apalermado, acompanhando depois as faúlhas que se lançavam endiabradas misturando-se com as estrelas.

"Existirão coisas mais belas? As sombras? A terra? As faúlhas incendiando o negro da noite?" - Poetizou.

Há muito tempo que fazia este ritual, era o seu único regozijo na vida. Depois de uma semana de intenso trabalho, dirigia-se ao seu tão amado cemitério e deliciava-se num mar de cerimónias que só ele conhecia. Sentia-se completo, feliz.

Voltou-se na direcção de um som surdo. Não era nada. O vento talvez.

Enclinou-se um pouco e com uma só mão apanhou e rodou a espetada uma e outra vez. Contava-se um, dois, três, quatro, cinco... seis, seis dedos num longo e fino espeto de aço. Ao lado, junto às pedras que rodeavam a pequena fogueira, jaziam mais quatro deles, encontravam-se já em estado de decomposição, inúteis, impróprios para alimento.

Fitou novamente as sombras, deliciado. Uma unha saltou, contorcionando-se em cima de uma brasa.
Começou a escrever no chão: OS FRACOS MORREM, OS FORTES COMEM-NOS.

"Ah! Lindo... poesia!" - Continuou: MUNDO IMUNDO, MUNDO DE FRACOS. MORREI! MORREI TODOS! E EU OS COMEREI!

"Justiça poética. Lindo!" - Pensou satisfeito enquanto se levantava.

Virou uma vez mais a espetada e dirigiu-se lentamente para o outro lado da fogueira. Puxou os cabelos negros para trás, tinha de os cortar um dia destes. Não tinha tempo. Prendeu-os numa borracha tirada do bolso atrás da nuca. A pele da face, pálida como Lua, esticou-se num sorriso breve. Apetecia-lhe novamente praticar exercício. Mirou para o chão e num só gesto apanhou a catana que ali se encontrava espetada ferindo mortalmente a terra mole. Estudou-a.

"És tão bela quanto a pá, juntas espalham a luz onde existe apenas escuridão!" - Os olhos brilhavam, quase faiscavam.

- Mãos à obra... - sussurou.

Junto ao monte de terra erguia-se ao alto uma longa vara. Nela empalado, um corpo pendia, já várias vezes esquartejado. Nu, totalmente nu. Era um homem de meia estatura, meia idade, com aspecto de estar enterrado à poucos dias. No meio da cara várias perfurações desenhavam um quase R, fruto de um anterior treino de lançamento de catana.

Recândido, orgulhoso de sua pontaria, gemia endiabrado, sorrindo e contorcendo-se sobre si mesmo, tinham sido anos de prática. O cheiro nauseabundo não o empedia que avançasse sobre o corpo disforme, pelo contrário, era perfume para suas narinas. A putrefacção atraía-o, simplesmente.
Deliciado, lançou a longa lâmina: mesmo no meio do pescoço rachando-o a meio. Retirou-a e em golpes firmes e precisos começou a dilacerar a coxa direita. Estocada após estocada, carne e osso saltando. Recândido gemendo de gozo. Gargalhadas loucas explodiam entre mordidas de beiços. Mais carne. Mais osso. A perna cai.

Suando como um animal, estudou atentamente o objecto de seu prazer. Ergueu lentamente o facalhão, lambeu-o.

"Longe vão os tempos da fome, da fome, maldita fome" - baixou a cabeça, fechou os olhos, gozando o momento. Um farrapo de carne fria como gelo escorreu-lhe pelo braço abaixo.

Minutos passaram. Os olhos abriram-se, voltaram-se na direcção de outro som surdo... o vento? Talvez. Ficava paranóico, tinha de se descontrair mais.

Pegou na perna pelo pé e sentou-se novamente no caixão, perto da fogueira.
Entretanto a espetada ficara pronta e com a mão livre retirou-a, deu uma dentada no primeiro dedo da fila deleitando-se com o sabor. Cuspiu um pedaço de unha que teimosamente tinha resistido ao lume. Pousando a iguaria, retirou um espeto maior que anteriormente colocara no caixão, enfiou-o no membro recem esfacelado e colocou-o por sua vez sobre a fogueira apoiado em dois suportes.
Outra dentada.

Novamente, retirou uma tigela de molho das entranhas do caixão e, com cuidado, começou a regar a perna, rodando-a cautelosamente em cada movimento. Pousou a gamela e deitou-se sobre o caixão, exausto. Adormeceu.

Sonhou com demónios a dançarem sobre fogueiras. Em volta, dezenas de corpos em estacas como a dele, esquartejados, mutilados. E ele dançava com eles, feliz. Comia, dançava. Amava com os demónios, ele próprio era um.

Acordou sem abrir os olhos. Um sorriso violento esculpia-se na sua cara. Como era feliz. Sentiu o corpo gelado e dormente, estava frio, muito frio. Abriu um olho... mas já era dia!
Levantou o pulso, estranhamente, quase não sentiu o braço: seis e trinta e três! - "Ó Diabo!"

Fez um esforço para se levantar mas não conseguiu. Tentou de novo em vão, frustrado.

"Que se passa?" - Pensou cansado e fustigado, o frio agudo tornava-lhe o corpo cada vez mais dormente...

"Se não me despacho, as pessoas começam a aparecer e estou perdido." - Sentiu o corpo mais entorpecido ainda, não era normal, afinal não era só o frio.

Levantou um pouco a cabeça e reparou na sua própria catana espetada no peito, atravessando-o até ao caixão. A pá na barriga, esventrada.

"Mas que..." - aterrado começou a desfalecer.

A cabeça tombou-lhe, pesada como tudo. Quase a fechar os olhos sentia a vida a escapar-se-lhe. Reparou então no vulto que se encontrava ao seu lado. Abriu mais os olhos num esforço terrível. Era uma mulher, de meia idade, um ramo de flores morria em suas mãos, contrastando gravemente com as vestes de luto. As lágrimas caiam-lhe em jorros desenfreados, imparáveis. Sua face envolta em raiva pura, ódio duro.

Escuridão...

-o-

Afinal a morte era assim, que estranho. Escuridão. Só escuridão. Recândido já não se sentia dormente, olhou para seu corpo, via-o, brilhava e mais esquisito ainda, estava inteiro. Já não percebia nada, só via escuridão à sua volta. Não. Além...uma luz a aproximar-se. Mas, eram demónios! Os seus demónios!

- Grandes são aqueles que olham na escuridão e vêm a luz! - Berrou, louco.
Treze demónios erguiam-se à sua frente, não dançavam, não se mexiam. Atrás deles, uma vara contorcia-se espetada num chão que não existia. Todos eles com sorrisos macabros, babando-se entre dentes. Todos eles com facalhões enormes, reluzentes. Todos eles...olhando esbugalhados...para Recândido.

06.11.97

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