Fikções, opinadelas e cenas que tais: Crónicas de coveiros: "3. O exterminador"

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Crónicas de coveiros: "3. O exterminador"

- Reco! Ó Reco! Como é? - Reclamou Tortúlio.- Como é murcão? Daqui a nada faz-se noite e nós aqui, a amanhá-las! Julgas q’eu tou aqui pra te aturar ou quê?! Força no lombo rapaz, ainda falta um metro de terra pra’ scavar!


E Reco Lopes lá vinha carregado com as pás e outras ferramentas. Tinham começado a cavar a cova logo após o almoço, entretanto, interromperam os trabalhos devido a uma cerimónia ao meio da tarde e Reco, coitado, era o burro de carga do material. Tremia só de olhar ou ouvir o seu tutor.


Tropeçou numa campa e espalhou tudo pelo chão.


- Idiota! Desastre! É o que és! Sempre a mesma coisa, não sei como te foram buscar à casa da tua mãezinha para trabalhar comigo aqui nas lides, estavas bem era a mamar ainda na teta dela! Apanha lá essa tralha, vamos!


Tortúlio continuava constantemente a fustigar a cabeça do rapaz. Já não bastava a vida de merda que tinha, não, tinham de lhe arranjar um atrasado mental como ajudante. Sabia muito bem porque o tinham feito, a sua mísera reforma entraria em vigor dali a 4 curtos meses, logo, era urgente encontrar um substituto: Reco Lopes claro. Veio mesmo a calhar para os padrecos. O coitado do infeliz era um bocado lento, tanto de cabeça como de reflexos, já tinha nascido assim. Ia na casa dos 16, um rapagão crescido, feito, de cabelos aos caracóis e feições a fugir para um menino de 8. Se não fosse ele a tentar pô-lo a mexer, ninguém o faria. Infelizmente, dia para dia lhe dava a sensação que essa missão era cada vez mais impossível.


Reco atrapalhado apanhou as ferramentas e continuou a marcha.


- Pronto S’Túlio, tá... tá aqui tudo - disse arfando numa voz esfarrapada.


- Bolas rapaz, já não vamos acabar esta porra a tempo! E a pá? Onde está a outra pá? - Exigiu Tortúlio virando a cabeça para onde Lopes tinha caído. - Ali! Vai lá buscá-la! - Disse apontando para um cabo emergindo por trás de uma lápide.


"Caramba!" - Pensou Reco Lopes. - "Também, o S’Túlio podia ser menos mau para mim. Qualquer coisa que eu faça pronto, tá logo a berrar comigo".


O Senhor Tortúlio Menezes era um coveiro exímio e competente, gostava fundamentalmente de manter tudo no sítio e limpinho, paranóia desenvolvida ao longo destes anos todos escavando e enterrando defuntos. Qualquer lixo, qualquer tufo de erva mais crescido, era logo um alarme geral no cemitério, originando verdadeiras rusgas a todos os cantos e campas. Era um homem de coração azedo e um olhar sempre zangado, via a vida como uma constante luta. Baixo, gordo e sempre de óculos na ponta do nariz, amaldiçoava tudo e todos, principalmente este idiota desmamado que lhe tinham "dispensado", para não utilizar outra palavra mais contundente, claro.


- Porca de vida! - Indagou. - Vá, despacha-te rapaz!


Reco correu para o local indicado por Tortúlio e agachou-se para apanhar a afamada pá.
"Despachar, despachar, sempre a correr. Rai’s partam o S’Túlio" - pensou queixando-se. - "Mas... que é isto?" - Indagou olhando para um fina cauda rabiando de baixo da colher da pá. - "Um rato? Só pode ser... deixa vêr" - levantou-a cuidadosamente e lá estava um ratito assustado, olhando para Reco tremendo e gemendo.


- Então? Essa pá vem ou não vem ó palerma? - Berrou Tortúlio. - E pra onde tás tu olhar?


- Não é nada S’Túlio, já lá vou, - disse disfarçando. Se o mestre visse o ratito era um descalabro total - "Coitadinho, tá ferido, o peso da pá foi demais para o pobre bicho." - Que iria fazer?


- Já vais, já vais! Já vais é levar um cachaço por não te despachares! - Ameaçou o mestre a aproximar-se em passos curtos e rápidos, - o quê?!?! - Exclamou vendo o pobre animaleco. - Mas que raio é isso? - Um rato? No meu cemitério? Impossível! Mata-o! Pisa-o! - Lopes nem se moveu, petrificado.


O roedor, em pânico, esforçou-se a correr dentro do que lhe era possível, meio a coxear, meio aos tropeções. Tortúlio atrás dele com a pá em riste disferia golpes atrás de golpes tentando acertar no diabo do rato que, mesmo ferido, lhe fugia com habilidade só igualada por outro roedor mais saudável.


- Palerma! Deixaste-o fugir, seu burro! - Gritou ele. - Deixa-me só acabar com este diabo imundo que já te trato da saúde!


Lápides caiam, flores voavam, vasos quebravam-se, Tortúlio saltando de campa em campa, pontapeando, derrubando tudo o que lhe aparecia à frente, enlouquecia cada vez que falhava um dos rudes golpes.


- Ratos é que não! Ratos é que não! Tudo menos ratos! - Berrava.


Tinha nojo a ratos e a tudo pequeno que se mexesse. E logo no seu cemitério? Isso é que não.
Reco Lopes assistia aterrorizado à cena caricata que se desenrolava à sua frente. Afinal, o ratito não tinha feito nada de mal. O único pecado cometido tinha sido o infortúnio de se estatelar debaixo da colher da pá.


Pouca sorte das poucas sortes, enfiara-se num beco sem saída entre as paredes de dois túmulos. Nenhum buraquito, nenhuma brecha onde se meter. O coitado encolheu-se todo, chiando, esperando imóvel pelo violento destino que o humano lhe tinha reservado.


- Ah! Imundo bicho! Fizeste-me destruir meio cemitério, mas agora não escapas! - Dito isto, o velho mediu distâncias e arremessou a pá em flecha na direcção do minúsculo rato. Resultado: cabeça para um lado corpo para outro. - Toma! Já não voltas a chatear mais - ironizava ele enquanto que se agachava para apanhar o instrumento. Limpou-lhe o sangue a um tufo de ervas.


Reco desistiu de torcer pela sorte do pobre ratito, sentou-se no chão, frustrado. Uma lágrima
cintilou percorrendo-lhe a face.


- Ó Reco! Palerma! Tu sentas-te? - Gritou o homem mais velho aproximando-se do rapaz. Deu-lhe um monumental cachaço fazendo-o rebolar pela terra fora, continuou: - só te sentas quando eu mandar! Vamos lá marreco! Toca a limpar esta gueira toda, hoje vais fazer horas extras!


Reco Lopes levantou-se com as lágrimas agora a jorrarem em catadupa e os olhos inchados, começou por recolher a enorme quantidade de flores que jaziam lavradas por todo o cemitério.


Entrementes, a noite caíra sobre o horizonte. Instalou-se a penumbra que logo foi cortada por
golpes de lampiões plantados aleatoriamente pelo cemitério. Tornara-se mais difícil a apanha e a limpeza, além disso, o rapaz tinha de ter cuidado para não cair na cova meia escavada.
Duas rosas, um gladíolo desfeito, três jarros que já nem jarros eram, Reco infeliz catava a imensidão colorida enquanto Tortúlio se distraía limando a lâmina da pá assassina, amaldiçoando o maldito bicho que na perseguição lhe fizera abrir várias fendas no precioso instrumento. O rapaz lá continuava a tarefa: mais quatro restos de túlipas; um ramo de violetas; um cravo; dois... dois pares de olhos? Não, três pares de olhos vermelhos de fogo emergindo da sombra de uma lápide. Mais ratos? Só podia ser. Os olhitos miravam directamente na direcção de Reco, que tremendo, ainda lhes sorriu em resposta e exclamou inocentemente sem pensar. - Mais ratitos!!!


- Quê?!?! - Gritou o velho girando na direcção de Reco, que acabava de se arrepender por ter denunciado os pobres ratos. - Mais quê?!?!


- Imediatamente reparou nos pequenos olhos que em vez de observarem Reco olhavam agora para ele.


Furioso, ergueu a pá colericamente com ambas as mãos e embrenhou-se em nova campanha exterminadora. Rogava as piores pragas que Reco alguma vez ouvira. Os três ratos fugiam e surgiam da escuridão, quase gozando com ele, desnorteando-o. A fúria mordendo-o cada vez mais. Lápides já caídas eram agora estilhaçadas, as flores pisadas e cacos chutados em todas as direcções.


- Ó palerma! - Disse frustrado. - Ajuda-me a acabar com estas pestes! Não fiques aí especado!


Reco uma vez mais olhava incrédulo para a cena demente que se desenvolvia à sua frente. Não aguentava mais vêr aquela loucura. Sentou-se desanimado num vaso virado do avesso, cabeça entre os joelhos e as mãos pressionando fortemente ambos os ouvidos. Não queria ver nem ouvir esta insanidade, nem pensar nela sequer. Começou a contar em voz baixa.


- Um, dois, três, quatro, cinco, seis... - ouvindo ainda os sons e gritos produzidos pelo louco tutor, continuou a contar mais alto tentando abafar o que não queria ouvir.


- Idiota! Puto da merda! Que tens tu? - Perguntou Tortúlio amarrado a uma cruz tentando pisar um dos ratos com um pé e acertar com a pá noutro. - Anda-me ajudar! Sozinho não dou conta destas pestes todas meu estúpido! - Enquanto gritava o animaleco restante mordia-o pendurado no traseiro. - Ahhh! Maldito!


Os três ratos juntaram-se e como que combinado correram lado a lado reunindo-se no corredor central do cemitério. Tortúlio Menezes olhava incrédulo para o grupo de roedores parecendo conspirar olhando para ele. Mais louco que nunca, desatou a berrar fazendo ecoar a sua voz estridente por todo o cemitério. Reco sobressaltou-se com os gritos guturais e, tremelicando com o corpo todo, começou a contar ainda mais alto: - ...quarenta e dois! Quarenta e três!


Tortúlio recomeçou a correr e parou a meros três metros dos pequenos roedores. Pá em riste, pronta para desferir um golpe que acabasse com os três de uma vez.


- Aí... Quietos... - sussurou. - Quietinhos e juntinhos... - os ratos como que obedecendo mantinham-se juntos, parados a olhar para ele.


Deu um passo. Os ratos recuaram um pouco. Deu outro passo. Recuaram sempre a olhar para Tortúlio. Outro. Recuaram.


"Raios partam os bichos" - disparatou para ele mesmo. - "Parece que adivinham o que lhes quero fazer".


Deu mais dois passos e os ratos recuaram uma vez mais. No acto reparou que acabava o corredor principal do cemitério terminando nas portas da capela.


"Eh! Eh!" - Sorriu para dentro - "Mais um pouco e apanho-vos lá dentro, fecho as portas, acendo a luz e acabo com todos à vontade. Ah!!! Não têm hipótese nenhuma.


Pensado isto, os três minorcas bichos penetraram na escuridão da porta da capela todos de uma vez. Tortúlio nem acreditando na sorte da oportunidade, embrenhou-se também na escuridão total.


Não contando com o pequeno declive do degrau da entrada, tropeçou e caiu como um saco de batatas na madeira antiga do soalho.


- Ah! Maldição! - Insinuou esfregando um nariz que, não fosse a escuridão, o veria vermelho como um tomate maduro.


Ainda deitado no chão de barriga e praguejando, lembrou-se dos ratos. Não poderia perder tempo, apre fechar as portas! Começou por apoiar as duas mãos no chão e olhando num reflexo para a frente, parou, estático. Três pares de olhos vermelhos reluzentes observavam-no fixamente a dois palmos da cara.


- Que...? - Começou a indagar quando outros tantos olhos vermelhos de sangue se iluminaram nas trevas mais afastados. Depois outros, outros e mais outros. Dezenas, e logo centenas, talvez milhares de olhos como estrelas de fogo olhando para Tortúlio Menezes na escuridão abafada, que entretanto tinha já migrado a fúria anterior para puro terror moldado na sua cara.


Quebrando o silêncio aberrante, ouviu-se um chiar que logo ecoou num concerto desenfreado de chios ensurdecedores. O pânico invadindo-lhe a alma começou por se escapar num gemido rouco, transtornado, contínuo e crescente, formado guturalmente no fundo da garganta. Experimentava um terror nunca antes sentido.


Um grupo de olhos saltaram à vez na sua direcção. Tortúlio sentiu uma multitude de dentes cravando-se ávidamente na sua farta carne, deixou escapar um grito de dôr tentando ao mesmo tempo se desembaraçar dos invisíveis roedores. Tinha de fugir daquela loucura. Começou a correr na direcção da luz ténue que surgia de fora. Cada vez mais dentadas se alojavam pelo corpo já sangrante. Dois mordiam-lhe a nuca sem largar, tentou tirá-los enquanto corria e conseguiu agarrar um, eram enormes como coelhos!


Arranjou forças que nem sabia ter e correu ainda mais quase tropeçando numa lápide quebrada no chão. Deixou cair os óculos e, desequilibrado, olhou para trás. Um mar de ratos e ratazanas acelerava ondulando na sua direcção num mar cinza caótico, chiando e saltando em sua perseguição. Recomeçou a corrida em pânico puro, perante tal visão de horror, deixando os óculos para trás.


Reco entretanto já não contava, tinha chegado até cem e não sabia mais. Já não ouvindo os anteriores gritos de fúria, levantou a cabeça e ficou pasmado ao vêr tal espectáculo. O senhor Tortúlio saltando entre campas, fugindo, caindo e olhando para trás, para algo que ele próprio não conseguia vêr.


Mas... o chão. O chão atrás dele movia-se como uma enorme sombra ondulante! Esfregou os olhos e reparou melhor nas centenas de pontos vermelhos piscando entre a massa cinzenta inquieta. Eram ratos! Uma quantidade enorme de ratos movendo-se como uma maré em fúria em perseguição do seu duro tutor!


- Reeeeeeeeco! Ó Reeeco! - Berrou o mestre em voz descontrolada. - Reco ajuda-me! Mata-os! Tira-mos de cima de mim! - Gritava histérico ele enquanto corria com duas dúzias de roedores agarrados ao corpo.


Reco Lopes manteve-se onde estava, sentado, aparvalhado com o que via. Tortúlio correndo na sua direcção em gritos de dor e pânico. Olhou para os ratos, depois outra vez para o mestre aflito quase às cegas sem os seus habituais óculos.


O velho corria como um louco e de repente, sem perceber, viu-se a voar sobre o chão. Aterrou mais à frente perto da cova aberta com o estrondo da cabeça a bater numa cruz de granito. Pôs-se de gatas meio zonzo no meio do caos. Olhou para trás. O sangue jorrando-lhe em catadupa dum enorme golpe na testa pela cara a abaixo. Por entre fios vermelhos do liquido incontrolável, pêlo e dentes só teve tempo de discernir uma perna estendida no lugar onde levantara vôo. A perna de Reco que agora era ultrapassada por ratos que nunca mais acabavam. Estupidificado constatava que nem lhe tocavam sequer. Em massa os bichos embateram em Tortúlio numa onda de fúria caindo como um peso morto na cova aberta acompanhando um grito quase sub-humano, arrepiante. Ratos e mais ratos saltando para a cova enchendo-a até cima num emaranhado de pequenas pernas, caudas rabiantes, corpos cinzentos e olhos vermelhos luminosos.


Reco levantou-se. Um sorriso leve pendia da sua face, gozava a observar aquele louco e inesperado festim de ratitos. Viu uma mão ensanguentada roída pelo pulso emergir da enchente que logo mergulhou novamente num frenesim. Não cabia em si de contentamento, fechou os olhos chorando de alegria.

Silêncio. Levantou as pestanas, lentamente, já não havia ratitos nem festim, só a cova e um silêncio rigoroso. Sorriu. Procurou a pá, pegou nela e foi-se embora, assobiando freneticamente.

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