Fikções, opinadelas e cenas que tais: Crónicas de coveiros: "4. Makievum Makievaas"

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Crónicas de coveiros: "4. Makievum Makievaas"

Deitado num galho de oliveira, Crisóstomo observava atentamente o desenrolar do funeral a uns seguros cinquenta metros de distância. Agarrava-se à árvore como um gato, deixando transparecer que não era a primeira vez que o fazia.

O rapaz travesso e curioso não era pelo funeral que ali estava matreiramente a espiar, mas sim pelo que iria acontecer a seguir.

Era um final de tarde cinzentão de Outono e as folhas do diverso arvoredo circunscrito ao cemitério amontoavam-se em padrões aleatorios pelo chão. O frio não era muito, mas a brisa atirava a folhagem da farta oliveira constantemente para a frente do ângulo de visão do rapaz. Ele, resmungando consigo mesmo, lá ia fazendo os possíveis por desocupar as vistas.

Crisóstomo não era um miúdo como os demais. Soprara 15 velas no seu último aniversário e na escola ia um ano à frente dos da sua idade. Enquanto os outros colegas preferiam passar o tempo a jogar e a brincar, ele era mais de um género recatado e fechado, cultivava no entanto uma curiosidade incansável, inata, intrigava-se com tudo o que de misterioso fosse ao redor de seu mundo. Aliás, até já tinha dito aos pais que "quando fosse para faculdade gostaria de ser cientista ou investigador para estudar isto e aquilo, coisas que os pobres pais ignoravam existir". Mas eles claro, como ainda era muito novo não faziam muito caso. Porém, achavam estranho ele não brincar com os demais e já tinham começado a achar anormal o seu comportamento como por exemplo o facto de Crisóstomo se dirigir todos os dias ao cemitério fazer sabia-se lá o quê. Enfim, os pais impotentes, encolhiam os ombros.

A cerimónia finalizara. As pessoas pesarosas lá se foram melancolicamente dispersando, indo cada uma à sua vida. Esticou-se ainda mais no galho e arregalou totalmente os olhos, e lá estava ele, o objecto do seu fascínio, o coveiro.

Personagem estranha e solitária, nunca falava com alguém exceptuando quando respondia uns esporádicos sim ou não numa pronúncia francesa enrolada. Era uma das coisas que maravilhavam Crisóstomo, via naquele homem enorme de quase dois metros com vestes sempre negras e pele excessivamente pálida um verdadeiro poço de mistérios, atiçando ainda mais o seu fogo de curiosidade. No entanto, era a maneira como o coveiro acabava os seus trabalhos que ainda mais confusão lhe toldava o cérebro.

Todas as vezes que tapava uma cova e se encontrava sozinho no cemitério já de noite, assistia-se a um ritual que só o furtivo Crisóstomo e o próprio coveiro conheciam. O homem punha de lado a pá, dirigia-se ao seu carro e trazia nos braços uma série de frascos
fumados, um livro velho e grosso e ainda meia dúzia de pequenos sacos, era pelo menos o que ele julgava discernir àquela distância. Os procedimentos que se seguiam também não os identificava com nada que tivesse visto até à data, mas concerteza eram de natureza obscura, no mínimo.

Ajoelhado no chão e em frente à cova recém coberta, o ténebre homem abriu o livro e colocou-o a seu lado. Começou por trocar o conteúdo dos frascos uns atrás dos outros. Intervalando, abria os braços, lia umas linhas do livro, olhava para cima e bradava algo numa qualquer língua estranha, que, como tudo o resto, desconhecia:

- Makievum Makievaas! Makievum Makievaas! - Fazia ecoar as palavras por todo o cemitério.
Finalizava a reza regando a terra com as misturas feitas anteriormente. Seguidamente, tirava dos sacos certos objectos e espalhava-os pela terra mole de forma, e isso conseguia vêr perfeitamente, a desenhar uma cruz. Mas uma cruz ao contrário.

Claro que, como exímio explorador, Crisóstomo já tinha investigado o significado daquele sinal e das palavras proferidas. Na biblioteca da vila tinha gasto horas e horas procurando algo que fizesse alusão àquela invulgar disposição da cruz. Revistou enciclopédias sobre a idade média e volumes sobre feitiçarias demoníacas, tinha sido difícil mas a procura dera os seus frutos. Num antigo livro sobre práticas ocultas descobrira o seu real significado: era o símbolo do anti-cristo. Quanto às palavras, não encontrara nada que lhes fizesse alusão.

Mas afinal o que se passava ali? Tinha de descobrir de alguma forma, disso tinha ele a certeza, pois de contrário dava em maluco.

Já há muitos enterros que esperava sem qualquer sorte uma oportunidade para verificar mais de perto aqueles objectos misteriosos. Era um rapaz com muita paciência, no entanto esta espera tão longa deixava-o numa ansiedade de roer as unhas.

Tentara arranjar uns binóculos sem sucesso, dos poucos que conhecia nenhum tinha e nem dinheiro para comprar uns conseguira obter, além do mais, de noite não veria nada. Cansado de esperar pela sorte, tinha de forjar uma outra maneira
qualquer. Depois de vários esquemas e planos deduziu que seria mais eficaz pôr em acção um que não fosse muito complicado.

O carro do homem. Sim, seria essa a diversão.

Desceu a árvore e saltou o muro na parte mais distante em relação à posição do coveiro. Dirigiu-se ao automóvel estacionado perto do enorme portão de entrada do cemitério iluminado por dois grandes lampiões, um de cada lado.

Estudou melhor o seu plano. Sim, seria fácil. O coveiro nunca deixava o carro trancado, assim, Crisóstomo agachado abriu com cuidado a porta do lado do condutor, baixou o travão de mão e fugiu o mais rápido que pôde. Como a rua do cemitério era um pouco inclinada logo o veiculo se começou a mover.

Correu tudo como planeara. Escondido atrás duma oliveira, Crisóstomo ouviu o carro que, embalado, embateu com força e estrondo no muro do fundo da rua. O barulho fez atrair a atenção do coveiro interrompendo-lhe o ritual. Levantou-se e reparou através do gradeamento do portão a ausência do seu automóvel. Praguejou qualquer coisa relacionado com travões e dirigiu-se para saída em passo apressado. Ao passar o portão parou sobre a forte iluminação dos lampiões, lançou um olhar desconfiado para os seus pertences espalhados lá atrás no chão. Perscrutou depois o cemitério inteiro, lentamente, hesitou o olhar por escassos momentos na direcção da oliveira como que pressentindo algo. Franziu o sobrolho e partiu em socorro da viatura.

O rapaz suava em gotas geladas, branco como cal, encolhera-se o mais que pôde atrás do tronco da árvore - "meu Deus" - pensou. - "Ele olhou para aqui, mas não pode ser, como poderia vêr através do tronco e no escuro? Não pode! Devo estar a imaginar coisas." - verificando que o coveiro desaparecera atrás de alguns cedros e do muro alto do cemiterio, correu na direcção da zona do ritual.

"Engraçado" - pensou parando a meio do caminho. - "Parece que ainda estou a ouvir aquelas palavras a gritar." - não ligou e continuou.

Conforme se ia aproximando, as palavras proferidas anteriormente pelo homem negro ecoavam cada vez mais alto na sua cabeça, só que desta vez totalmente distorcidas. Achou estranho mas continuou a caminhada. Sentia o próprio ar mais denso e pesado, custava-lhe respirar.

Petrificado será a palavra certa para descrever como Crisóstomo reagiu ao vislumbrar os objectos da estranha cerimónia. Espalhado pela terra solta da cova, via-se uma multitude de insectos mortos. Baratas, vermes, moscardos, centopeias e outros que não conseguia identificar. Veio-lhe uma vontade súbita de vomitar, controlou-se. Reparou então na cruz invertida e o seu estômago mais revoltado ficou. Era composta e desenhada por cabeças de aves e pequenos gatos mortos, à volta, tigelas do que parecia ser mercúrio puro adornava o conjunto.

- Meu Deus! - Exclamou tentando segurar um vómito. - "Voodoo! Ritual voodoo, só pode ser!" - Pensou horrificado.

As vozes martelavam fortemente dentro da sua cabeça. Sacudiu-a aflito. Não paravam. Sentia-se entorpecido, dominado por uma força que não conseguia vêr.

Foi então que reparou incrédulo no livro ainda aberto. O maldito pulsava e ondulava as suas páginas como se estivessem vivas. Palavras irreconhecíveis apareciam e desapareciam em redemoinhos. Conseguiu ler em letras maiores o já familiar: "Makievum Makievaas". As letras pareciam olhar para ele invadindo-lhe a alma.

Foi a gota de água. Crisóstomo não aguentou mais e fugiu com todas as forças que tinha, tropeçando pelo caminho em tudo o que lhe aparecia à frente.

Já na sua árvore de refúgio, tentou-se acalmar. Os ecos tinham desaparecido assim como o ar pesado.

"Voodoo. Voodoo esquisito, mas definitivamente voodoo." - Repetiu mentalmente. - Mas o que quererá ele fazer com isso?

Crisóstomo sabia perfeitamente que se tratava deste tipo de magia negra por já o ter estudado anteriormente. No entanto, era diferente de todos os outros rituais que tinha lido nos velhos livros ou vislumbrado na tv. Uma coisa era certa, tinha algo a vêr com o maldito livro e o que nele estava escrito. Quando se aproximara da cova aquelas palavras não paravam de soar na sua cabeça. Parecia que uma multitude de almas moribundas se uniam a gritar em uníssono aquelas palavras maléficas. O estranho é que parecia ser um grito de clemência, uma clemência que nunca mais chegava. Palavras maléficas mas num grito de escravidão.

Subitamente foi assaltado por um sentimento de angústia, de pena. Não sabia porquê. Depois sentiu um arrepio. Olhou para o portão, o coveiro voltara.

O homem negro atravessou a entrada soltando uns grunhidos, talvez maldizendo a sua sorte. Aproximou-se a passos largos e pesados, estancou junto à cova. Ficou ali parado em transe, olhar fixado no chão, quase de costas para onde Crisóstomo estava. O rapaz observava do seu ramo numa tensão agravada pela situação anterior. Ainda suando com o coração descontrolado.

De repente, o coveiro voltou a cabeça na sua exacta direcção. Crisóstomo ficou petrificado, interrompeu a respiração num gesto reflexo, não queria acreditar. O homem negro olhando na sua direcção com os olhos enormes revirados em branco desenhava um sorriso ainda mais branco e diabólico, de proporções anormais. Parecia que alguém ou algo lhe segredara o que acontecera na sua ausência e lhe dissera onde ele estava.

- Céus! Estou perdido! - Rogou baixinho.

As palavras malditas recomeçaram a ecoar na sua cabeça, cada grito mais forte que o anterior. Tapou os ouvidos, não resultou. Enlouquecia. O coveiro continuava na mesma posição, agora acompanhando as palavras que surgiam do nada com a própria boca, murmurando.

- Makievum Makievaas! Makievum Makievaas! - Aumentava progressivamente a tom de voz. - Makievum Makievaas!

Com a cabeça latejando, Crisóstomo desceu a árvore quase caindo. As palavras do coveiro, poderosas, abafavam já os ecos na sua cabeça.

- Makievum Makievaas! - Proferia freneticamente com a boca.

Começou-lhe a sair sangue pelo nariz. Tentou gritar por socorro mas as palavras saíam-lhe abafadas, inaudíveis. Entrou em pânico. Mas não podia, tinha de se acalmar, concentrou-se. Só assim teria alguma hipótese. Não conseguia se mover.

- Makievum Makievaas! - Continuava o coveiro. Parou. Gargalhou de forma rouca.

Olhando-o fixamente, começou a falar em tom baixo e continuamente em francês. Versos enrolados eram vomitados rapidamente sem parar. Crisóstomo, mesmo sendo bom aluno a francês não conseguia acompanhá-lo. Tirava uma palavra aqui e ali mas não conseguia perceber nada. Finalmente rematou:
- "Makievum Makievaas!!!" - e parou. Num gesto seco olhou para o céu de carvão.

- À tous âmes damnée! À tous âmes en peine! Je vous commande! - Baixou os olhos para Crisóstomo - tu vas mourir!!!

Crisóstomo sentiu o pânico invadir-lhe novamente todos os poros do corpo. O coveiro ia assassina-lo. Chamava por almas condenadas e em sofrimento. Ia morrer e irónicamente estava no sitio certo para isso, lembrou-se. Nunca ninguém iria encontrá-lo - "Iria enterra-lo vivo?!" - pensou.

- Makievum Makievaas! - Gritou o homem negro ainda mais grotescamente. Levantou os braços.

O rapaz viu então horrificado todas as campas do cemitério se erguendo em espasmos. Blocos inteiros de terra subindo e subindo parando a três ou quatro metros do chão.

- À tous âmes damnée! - Repetiu - À tous âmes en peine!

De cada cova aberta saíram nuvens escuras pairando e gemendo sob os blocos de terra levantados. Revolviam-se e rodavam num tremor inimaginável. Coagulavam pulsando em corpos inexistentes. Todas elas emitindo as mesmas palavras guturais do coveiro mas numa frequência de som a lembrar o infinito. O homem entrara novamente em estado de transe, levitando entre elas na mesma posição em que ficara, com os olhos revirados.

As nuvens de trevas iniciaram uma rota de colisão com o rapaz, aproximando-se lentamente, sempre gemendo, animalescamente.

- Calma Crisóstomo, calma! - Murmurou. - Mantém a calma e pensa, pensa, não pares de pensar. - Tinha de fazer algo ou então ia sucumbir a um horror impensável. Nem queria sequer imaginar qual seria a sensação do toque daquelas massas etéreas horrendas.

Acalmar-se era vital, a chave da sua salvação, mesmo com a cabeça quase a rebentar invadida por pensamentos impossíveis e palavras loucas. Tinha de haver algo que o pudesse libertar, algum ponto fraco no ritual do coveiro - "algo, algo! Crisóstomo! Pensa!!!." - Segundo o que tinha lido, havia sempre um contra-procedimento que anulasse os efeitos da magia negra, qualquer que fosse o tipo ou origem.
E as nuvens ficavam agora perigosamente perto, rodeando-o de todos os angulos formando uma só massa turbilhante. Tinha forçosamente de haver uma maneira, começou a associar o que tinha aprendido. Com uma concentração só dele, Crisóstomo lembrou-se quando se tinha aproximado da cova e visto os objectos pela primeira vez. Pelo sotaque francês, o coveiro mostrara que se tratava de uma magia negra originária de alguma ilha remota das Caraíbas, mas não via por onde isso o poderia ajudar. A não ser, claro está, que tinha de responder na mesma linguagem imposta, isto é, francês. Passou para a cruz invertida: somente significava que o bruxo coveiro renunciava a qualquer Deus que fosse e desejava o domínio do demo, o instrumento usado para isso eram as almas que acabavam de ser enterradas e eram convertidas para servir o demónio. Depois todos os pormenores que se lembrava: o som ecoante, o coveiro comandando as almas penadas, as palavras repetidas continuamente no livro, Makievum Makievaas, Makievum Makievaas...

"Mas claro! Só podia ser isso!" - Pensou ele já com uma mancha negra em fúria a tapar-lhe todo o campo de visão.

Lembrou-se dos gritos agonizantes daquelas almas sempre repetindo as palavras do livro. As pobres não eram convertidas ao estado maléfico como tinha pensado mas presas contra-vontade e mantidas em escravidão como servas. Cada uma na sua campa numa verdadeira masmorra demoníaca, para posteriormente serem controladas.

Tinha de agir rápido pois começava a sentir-se fraco. Parecia que as almas lhe sugavam a sua essência de vida. Escolheu as melhores palavras que sabia e reuniu todas as forças que pôde, a resposta tinha de estar no que acreditava.

- Dieu veuille avoir sons âmes! - tentou gritar, a medo, aclamando a Deus que viesse libertar as suas almas.
Nada aconteceu.

- Dieu veuille avoir sons âmes!!! - Repetiu mais forte mas sentindo as forças a esvairem-se.

Nada. Desesperado, repetiu novamente para si próprio - "Dieu veuille avoir... sons..." Sentia-se desfalecer, estava perdido.

Foi então que aconteceu, sem aviso. O som e as palavras cessaram. O turbilhão na cabeça do rapaz também. A nuvem pérfida formou-se numa fina névoa branca, pairando suavemente à volta dele tocando-o levemente. Todos os blocos de terra que flutuavam no ar caíram um por um em estrondos abafados. O silêncio imperou.

À sua frente, o coveiro levitava agora deitado desfalecido, os braços caídos, rodando sobre si próprio. A neblina juntou-se à sua volta formando um casulo de luz suave. O coveiro desapareceu lentamente dando lugar a uma nuvem negra, ainda mais negra e violenta do que as outras. Subiu em espiral e foi engolida pela noite num horripilante gemido. Baixou a cabeça e viu a nuvem alva desvanecer-se, lentamente.

E então Crisóstomo sentiu-se envolvido por uma paz incrível, que nunca pensara existir. - Tinha sido tocado por anjos! - Perdeu as forças e desmaiou.

-o-

Acordou rodeado por um tumulto de pessoas chamando-o e com a mãe tentando reanima-lo. Sentou-se e sorriu, lembrou-se que vencera o bruxo demónio.

As pessoas interrogavam-se sobre o que tinha provocado aquela confusão endiabrada no cemitério. Campas semiabertas, imensos blocos de terra encavilhados diagonalmente nas covas e espalhados pelo chão, o rapaz no meio daquela algazarra toda a sorrir sem razão aparente. No entanto e sem perceberem muito bem porquê, sentiram todos uma paz imensa inundar-lhes a alma. Era engraçado, não entendiam mas pressentiam que também não precisavam compreender. Deixaram de fazer perguntas e dirigiram-se todos para as suas casas, todos com um leve sorriso desenhado na cara, como Crisóstomo.

26.11.97

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