1ª parte
Espero que eles cheguem. Sou o único, o último, só posso ser. Tanta preparação, tanto treino, para quê. As melhores armas do império manejadas pelas mãos dos guerreiros mais experientes, dos mais sábios generais marcados por décadas de batalhas. Cortados, trespassados, feitos em pedaços, todos e cada um deles. Os meus amigos mais chegados, companheiros de luta, os guerreiros mais formidáveis que eu amava como irmãos. Torturados, espezinhados por armas e garras vendidas ao diabo. Agora só estou eu. Exausto, quase sem forças para continuar a lutar por algo que se encontrava perdido à partida. Foi uma ilusão pensar que teriamos alguma hipótese, uma ilusão, pelos deuses, uma ilusão, algo forjado por centenas de anos de arrogante superioridade... deuses como estavamos errados! Estão perto, sinto-o, andam por aí. Mais cedo ou mais tarde vão-me encontrar e sem misericórdia, cortar-me-ão em dois como uma faca o faz ao fruto maduro. Mas que importa, façam-no, já não tenho vontade de viver, agora não. Perdi tudo. Irei morrer sim, irei morrer mas malditos sejam lutarei até até à última gota de força vital que me reste. Nem sei quantos eliminei, não, não faço a mínima ideia. A minha espada, esta que agora me serve de apoio à testa aqui ajoelhado, encontra-se embebida em sangues impossíveis. Eles são tantos, infinitos. Atacam como nunca vi, em grupos ferozes e assassinos. Membros de dois metros esfacelando e esmagando entre martelos de fogo carbonizando armaduras, músculos, carne, ossos, tudo! Mais de vinte para cada um de nós. Infinitos. Sinto-me tão cansado, exausto. E a minha querida Ilyann, ó minha querida Ilyann. Ao menos que te encontre para onde vá quando me trespassarem. Bem me lembro de teu rosto de linhas suaves, minha princesa de todo o sempre. Que saudades. Ai a raiva que me invadiu a alma, que me tornou azedo e enegrecido quando te encontrei já sem vida. O teu vestido branco, tingido todo ele de encarnado. Extinguiste-te nas mãos da cobardia da espionagem, sem defesa, sem hipótese alguma. E eu, inútil, longe de ti, sem te poder proteger, nem um último beijo te dei. No momento que te encontrei só queria morrer e a única coisa que mo impedia de o fazer era a sede de vingança. Despedaçar os responsáveis por esse acto cruel, horrendo. Tê-los nas minhas mãos e tirar-lhes o cérebro pelos orifícios dos olhos depois de lhes esmagar todos os membros do corpo... ah... tão cansado que estou. A minha armadura desfaz-se de tantos golpes aparados. O meu escudo, já não o tenho, encontra-se algures enfiado entre as costelas de um deles. Malditos, hordas do diabo. Consigo sentir-lhes o cheiro nauseabundo, rondando os escombros, rondando-me a mim, pois também me sentem, aqui ajoelhado, iludindo a morte aos poucos. Os ideais que defendia desvanecem-se, apagam-se. Todos estes anos de vida mantendo o Bem num pedestal, julgando-o invencível, indestronável, um campeão. Que enganado eu estava. O Mal é superior a tudo, sei-o agora. Malditos. Corroem-me por dentro e vão-me destruir por fora, inevitável fado. O Mal. Como é possível? Pelos deuses, como é possível!?!?
-o-
Algures entre os despojos de uma batalha de proporções sangrentas colossais, uma patrulha de Mortes Lentas procurava ávidamente pelo último dos guerreiros humanos. Eles e o resto do exército tinham dizimado por completo as tropas desses animais fracos e ridículos. O cheiro a sangue fresco punha-os ainda mais ansiosos, sedentos por matar. Necessitavam de trespassar, torturar, dilacerar, tanto como respirar ou comer, era o objectivo sublime da sua existência. Isso e servir o seu mestre, o Lorde do medo.
Viravam e revolviam tudo na esperança de encontrar o rato humano primeiro, antes das outras patrulhas de Mortes Lentas. As tropas divertiam-se com a tortura dos animais feridos mas estes não durariam muito e logo se voltariam para o que restava. Incumbidos da missão de o encontrar a rapidez tornava-se então crucial, teriam assim o animal só para eles, um prémio que bem mereciam.
Entretanto espantavam-se como um só animal humano havera morto ou ferido tantos deles. Ele e seus companheiros de luta tinham sido incrivelmente difíceis de eliminar. Não como o resto do exército humano, não, esse tinha sido dizimado como um maço de palha seca num vento ciclónico de fogo. Simplesmente esmagado. Agora estes animas, estes em particular eram diferentes. Lutavam com a raiva e o ímpeto de quase deuses. Era incrível verificar, mesmo para um Morte Lenta, a ferocidade e a técnica desta pequena força prodigiosa. As espadas quase tão grandes quanto eles próprios, e no entanto nas suas minúsculas e frágeis garras pareciam tão leves como madeira. Que destreza, que força, dava a impressão de serem imortais e invencíveis, isto claro, até começarem a sucumbir inevitavelmente um por um, perante um número sem fim de Mortes Lentas.
- Ali Bandag! Cheira ali! - Arfou Rombbod, capitão do pelotão de cheiro Gulla no alto do seu cavalo do Inferno - Ainda não cheiramos esse sector! Acabando este quero um relatório imediato desse!
- Arf! - Obedeceu lenta mas decididamente o soldado batedor Bandag.
Usavam os seus martelos como detectores de vida animal apontando-os para o efeito em todas as direcções. Se por acaso alguma forma de energia vital ficasse ao alcançe suficiente do enorme maço, por mais tenue que fosse, logo o seu fogo se atiçava, ansioso por carne fresca.
Bandag percorreu o espaço indicado por seu capitão com a ferocidade habitual, revolvendo tudo à sua passagem, deitando abaixo com a sua montada qualquer obstáculo que pudesse albergar um inútil humano. A zona era uma pequena colina de inclinação média onde surgiam dispersas no topo várias construções excessivamente destruídas, não passavam de escombros envoltos por um etéreo nevoeiro espesso.
Chegou triunfalmente ao cimo, imperturbável, onde imediatamente o cavalo atrapalhado quase sem visão devido ao nevoeiro tropeçou numa perna cauterizada e fez cair o cavaleiro de frente no meio de um monte de ossos e vísceras originando uma confusão grotesca.
- Urgh! - Soltou fazendo uma careta. - Merdosos animais! Pena não estarem vivos.
Levantou-se e parou abruptamente, estático como um cão de caça. Olhava para o seu martelo atiçado repentina e ligeiramente. Na direcção indicada pela arma erguia-se o que fora uma velha casa de pasto, com as vigas do teto erguendo-se imponentemente entre o telhado em ruínas.
Surgiu um enorme sorriso na sua grotesca cara mostrando quatro fiadas de dentes afiados e podres pela metade.
- Animal, agora não me escapas - disse agarrando o pesado maço com ambas as garras.
Deixando o cavalo para trás iniciou uma lenta marcha com todos os sentidos alerta, algures nesses escombros encontrava-se o animal humano. Espreitou por trás da primeira viga que se aproximou da sua batida. Nada. Bem, lá teria que procurar em todas elas... continuou.
Entretanto cá em baixo o resto do pelotão já há largos momentos vira o seu colega embrenhar-se entre a névoa, mas tardava reaparecer. A inquietação invadiu as hostes, paciência não era o forte dos Mortes Lentas e indagavam já nervosamente entre si.
- Capitão! Capitão! - Aventurou-se o sargento Mok. - Eu não queria tirar conclusões
precipitadas mas, o Bandag já desapareceu à um bom pedaço não é?
- Sim! - Concordou Rombbod ásperamente.
- Então... e se ele estiver neste preciso momento a divertir-se sozinho com animal? Era um bocado injusto não acha?
- Basta!!! Silêncio! Não quero ouvir mais estrume a sair por essa boca fora!!! - Rugiu o capitão abanando o seu martelo em todos os sentidos, Mok apenas teve tempo de se baixar para não levar com a pesada arma mesmo no meio da testa.
Retirou-se arrependido por ter aberto a bocarra afagando o pêlo da cabeça meio queimado.
Momentos mais tarde um impaciente capitão Rombbod talhava no chão um vale com o seu peso num vai-e-vem constante. Barafustava consigo mesmo batendo regularmente num ou outro soldado que se encontrava à mão de dar porrada.
- Pelotão às armas! - Grunhiu acabando-se-lhe a paciência. Mentiu, não deitando por terra o orgulho próprio: - nosso camarada batedor poderá correr perigo de vida por isso teremos de ir em seu auxilio! - melhor não poderia ter dito - estripemos todos juntos este último inimigo!
Que maravilha, todos se apressaram a iniciar a debandada, ávidos de sangue. À frente, o capitão na sua montada guiava a manada jurando a si próprio que se encontrasse o raio do batedor divertindo-se sozinho dava-o de comer ao cavalo depois de o esmagar com o martelo.
Soldados e respectivas montadas martirizavam a terra já torturada pela batalha anterior, imponentes nos seus sons triunfantes de guerra. Armas abanando batendo em armaduras. Cascos chocando em pedra esmagando-a em estilhaços e fumo. Uma visão aterradora para qualquer inimigo que fosse. E no entanto, a uns meros metros do inicio da subida pararam. Apalermados. De um momento para o outro viram-se a cruzar com uma cabeça decapitada a rolar aos solavancos colina abaixo. A cabeça de Bandag com um grande sorriso talhado de orelha a orelha.
-o-
Morrei cães! Morrei todos! Que prazer este de perfurar incessantemente o corpo odioso do monstro. Que loucura esta a que me invade. Que loucura. Mas não consigo parar, a minha fúria não tem limites, não se vai enquanto trespasso vezes sem conta esta enorme massa disforme. A vingança é mais forte que tudo o resto, tolda-me o corpo, invade-me a alma. Como eles são horrorosos. Em batalha não há tempo nem espaço para dispensar em observações deste tipo, mas agora... posso ver como são horríveis. Criaturas do demónio. Pára maldito pára, não te deixes levar pela loucura. Poupa as forças para levar mais alguns contigo para os infernos. Nem queria acreditar quando vi a estúpida criatura espreitar numa das vigas do meu esconderijo. Tinha-o visto chegar quando reparei na claridade provocada pelo seu martelo e no barulho que fez. Imbecil, foi como se dissesse "estou aqui, mata-me". A um escasso comprimento de três braços foi só levantar a espada e reparar como voava a sua cabeçorra num arco por entre a névoa. Estúpido. Concerteza seria um batedor, algures lá fora estaria uma patrulha à minha procura ou mesmo um batalhão inteiro, ouvi claramente a parafernália que se fez soar a sul. Pois podeis vir, todos vocês, cães imundos. Vinde encontrar a morte na minha espada. Porque eu não tenho medo de morrer.
-o-
Algures mais abaixo...
- Sim capitão. É mesmo o Bandag - disse o soldado Mollek erguendo bem alto a cabeça do seu ex-colega de armas. - Não há dúvida.
Dizendo estas palavras deixou-a cair chutando-a com força para longe. Todos, inclusive Rombbod, soltaram uma gargalhada. Não era bem do estúpido gesto de Mollek que se riam, não. Aliás, era normalíssimo este tipo de comportamento e desprezo entre os da sua espécie, chegavam mesmo a torturar os seus próprios feridos pelo simples prazer de os ouvirem gemer. Não, na verdade pensava no seu intimo que afinal ainda teriam a oportunidade de chacinar e gozar com o merdoso do último animal.
- Bem, bandalhos, preparai-vos para continuar a debandada. De uma coisa temos agora a certeza - afirmou Rombbod.
- O quê capitão? - Perguntaram ignorantes alguns em quase em uníssono.
- O quê?! Vocês ainda perguntam o quê idiotas? Agora temos a certeza que o porco do animal está encurralado lá em cima! Isto é, se não nos despacharmos a cercar a colina - respondeu frustrado e tentando olhar entre a névoa mais acima.
Acenaram todos em concordância, comentando entre eles o altíssimo quociente de inteligência do seu magnífico capitão.
- Tronk, Norr! Contornai o perímetro e patrulhai o lado norte da colina! - Comandou.
- Bollo, Lombbad! Lado este! Bardonka, Rokk! Oeste! O resto fica tudo aqui comigo na frente sul. Nós continuaremos a debandada. O animal não terá por onde fugir.
As unidades escolhidas lá partiram cercando todo o perímetro da colina resmungando nomes ininteligíveis, qualquer coisa que se traduzia no azar de ficarem à seca enquanto os outros se divertiam com o humano. Malvada sorte.
-o-
Cansado. Sinto-me tão cansado. Envelhecido. Será que vale a pena continuar? Recuperei um pouco de força de vontade com a morte do estúpido demónio, mas agora que passou a raiva... já não sei. Os outros estão mais perto, prontos para a chacina, sinto-o. Ouvi à pouco vários cascos a galope ao longe em todas as direcções, cercando-me, depois, nada. Silêncio novamente. Terá chegado a minha hora? Um ataque em força e não terei a mínima hipótese. Momentos tive no passado, momentos, em que era um jovem e parecia ter o mundo em minhas mãos. Insensatez, julgava-me invencível, nenhuma situação me travaria. Lembro-me perfeitamente, eu e os meus camaradas nas suas armaduras a brilhar sobre um sol de primavera. Um juramento ritual de guerreiros novinhos em folha, por estrear. Prometíamos defender o império com as nossas vidas, e nós orgulhosos sentiamo-nos invencíveis. Invencíveis... ironia, mal sabíamos nós o que o futuro nos reservara. Se ao menos nos tivéssemos preparado melhor. Mas como? Éramos a elite. A nata dos guerreiros deste planeta. Aqueles em que o treino eram verdadeiros combates nas frentes de defesa do reino, todos os dias. Que mais poderíamos fazer? Ser-mos deuses?
Um barulho...
Sim foi mesmo um baque seco por trás da terceira viga. Serão eles finalmente? Mas não vira nenhum clarão de seus martelos. Outro batedor? Improvável. Não são tão estúpidos, assim como não serão tão espertos de iniciarem um assalto sem os seus martelos acusadores de sua presença. Mas espera, ah, só pode ser. Uma rápida espreitadela e... sim, claro. O cavalo do inferno do demónio morto. Imponente e grave. Esperando obedientemente que seu amo volte. Que animal poderoso, de músculos largos e firmes, todo negro como a noite mais escura sem luar. Não possui crina mas em compensação é dono de um longo rabo acetinado. Os demónios enfeitam-nos com máscaras de longos cornos afiados, assim como armaduras com mais picos no peito e nas colossais patas. O que mais salta à vista no entanto são os seus olhos totalmente negros, sobrenaturais, por momentos e em jogos de sombra, dissolvem-se na negridão total do pêlo da cabeça dando origem a uma besta sem olhos, aberrante. Saltam à minha memória imagens de quando os monstros surgiram em filas infindáveis daqueles cavalos iluminados pelos maços de fogo dos seus cavaleiros, rugindo em barulhos ensurdecedores num trote de guerra. Dezenas dos nossos soldados não aguentaram a visão aterradora e fugiram, completamente aterrorizados. Dadas as circunstâncias era compreensível, tinham-se deparado com um quadro pintado pelo próprio senhor das fornalhas. Que loucura. Onde os humanos tinham errado para merecer tal destino? Tal adversário em quantidades intraduzíveis? Força pura de ataque. Bruta, brutal. Vantagem descomunal sobre o inimigo. São organismos com um só fim, viverem para ser máquinas de guerra. Matar, matar, destruir. Nenhum cantar pela vitória e nem pela bandeira conquistada, nenhuma estratégia de ataque, nenhum plano de defesa, nada. Somente ir em frente e matar, destruir, morrer e continuar a matar. Mas porquê? Não há resposta e se calhar nunca a irei ter. Injustiça dos deuses, do Bem que tão acérrimamente e fielmente servi. A vida como o homem a conhece desmoronou-se como estas vigas arrancadas da estrutura do edifício. Estas vigas...
-o-
Rombbod colocara apressadamente o seu capacete de guerra logo após a ordem de continuar a debandada, não fossem os deuses tecê-las. O resto do pelotão protegeu igualmente os seus pescoços com os anéis couraçados a que tinham direito. O capitão ficara mais aliviado por saber que o animal estaria inteiro, não, melhor ainda, talvez estivesse ferido e não lhes desse muito trabalho a capturar para posterior tortura. Claro que ele teria a honra da primeira agonia, até se lhe arrepiavam os pêlos das felpudas orelhas por imaginar tal imagem de prazer.
Passavam agora por um par de carroças viradas, emergiam alguns braços e pernas debaixo delas. Ao longe conseguia discernir vagamente os outros Mortes Lentas a tapar o caminho de fuga, perfeita estratégia. Estavam quase a meio da subida onde o nevoeiro se adensava mais tornando a visibilidade gradualmente a chegar ao uns meros dez braços.
Ergueu o punho.
- Alto! - Ordenou ao batalhão.
A imagem era mais forte que seu desejo. A cabeça de Bandag a rolar colina abaixo não lhe saía da cabeça. O raio do animal era perigoso, demasiado perigoso. Não era à toa que tinha sido o único sobrevivente dos da sua raça. Havia a necessidade de redobrar as atenções, ainda para mais ele ia à frente da debandada e tinha amor ao seu querido pescoço.
- Mok, Trompp e Bork! Coloquem-se meio espaço à frente e tentai detectar qualquer movimento entre a névoa! - Disse em tom imperativo. - Qualquer cheiro, contacto visual ou sinal de martelo gritem! Ouviram? Gritem com todos os vossos pulmões! Nós faremos logo de seguida a investida e aprisionaremos com o maldito animal!
"Perfeita estratégia novamente", disse para si próprio. Assim garantia a sua segurança e não punha em perigo a sua exclusiva tortura ao animal.
- Em frente! Marcha lentaaa... Frente! - Comandou.
A debandada recomeçara. Triunfante, o capitão regozijava com a sua imensa inteligência. Baba descia-lhe pelo queixo manchando o dorso do cavalo.
Mais ou menos meio espaço mais à frente três Mortes Lentas tremiam com o futuro incerto de seus pescoços. Tal como o capitão a imagem da cabeça do seu ex-camarada ainda pulsava nos seus cérebros.
É de importância maior dizer que um Morte Lenta com medo é um Morte Lenta com os sentidos duplamente sensíveis. Colocavam-se lado a lado pois a unidade fazia a força e força era a única coisa que tinham a seu favor, o formidável sucesso dos seus exércitos resumia-se a essa estratégia. O bicho poderia acabar com um ou mesmo ferir mais dois ou com sorte três, mas acabar com quatro ao mesmo tempo é que não. Impossível. Portanto, quanto mais juntos estivessem, melhor. A névoa conquistava o espaço em redor, cada vez mais densa. Mok olhou para trás. Deixara de distingir os contornos do seu superior tempos atrás enquanto se afastavam, cerca de um quarto de espaço mais abaixo. Agora, nada se via. Piorando a situação, a humidade entranhava-se como um peganhento parasita nas potentes narinas dos Mortes Lentas anulando qualquer tentativa de reconhecimento utilizando o método olfativo. Mais a visão encurtada as capacidades dos três batedores ficavam reduzidas ao martelo e à audição que, diga-se, não era das melhores.
- Hu! Parece que ouvi qualquer coisa - disse Bork. - Pareceu-me mesmo ouvir qualquer coisa.
Os três cavaleiros pararam ao mesmo tempo.
- O quê? Onde? - Perguntou Trompp esticando a cabeça para todos os lados, olhos esbugalhados, - não consigo ver nada.
- Eu também não - replicou Mok.
- Mas que ouvi, ai isso é que ouvi. Corte os meus bedolms fora se não ouvi - continuou Bork pondo a pata por trás da orelha. - Agora!! Ouviram?! Uma série de sons surdos seguidos parando de seguida!
- Bem, por acaso até ouvi alguma coisa - concordou Mok. - Mas não consigo distingir o quê. Trompp?
- Nem por isso, vocês estão é a ouvir o nevoeiro a bater nas vossas orelhas. - zombou, nervosamente.
- Bahrggh! Não sejas camelo e ouve melhor! - Soltou Mok.
Trompp ergueu ainda mais as orelhas denotando impaciência, notava-se a frustração esculpida na sua face.
O silêncio imperou. Nada.
- Vocês devem estar a gozar. Estamos a perder um tempo precioso aqui à espera - queixou-se Trompp.
Ouviu-se outro som, depois nada novamente. E então ergueram todos de uma vez o sobrolho, dessa vez ouviram bem e o trio de Mortes Lentas num reflexo levaram as patas às respectivas gargantas. Engoliram em seco.
- Vês?! Vês Idiota?! Ouviste ou não ouviste? Estica-me essas orelhas! - Ordenou Mok suando por todos os poros.
- Bosta e tripas de javali! Não se vê nada! Se ao menos o raio da névoa levantasse - disse nervosamente Bork.
Cada vez que tentavam penetrar o olhar no denso nevoeiro, este parecia que se fechava ainda mais, tornava-se uma situação insuportável mesmo para os super-destemidos Mortes Lentas.
- Não estou a gostar nada disto, e... e se fossemos para trás? - Tentou Trompp - Podíamos dizer ao capitão que não encontramos nada. - rematou começando-se a ouvir os cascos dos companheiros que se aproximavam na retaguarda.
- E achas que ele ia na conversa palerma? Ainda para mais com o perímetro todo coberto, como é que achas que não encontraríamos nada? Seu esterco!
Mok ficava farto do seu companheiro. Tanto gozava como a seguir ficava literalmente borrado de medo. Não merecia viver, uma torturazinha, ah uma torturazinha...
As suas agradáveis divagações desvaneceram-se por completo no momento exacto em que "aquilo" começara a surgir do nada, numa sombra, cuspido do manto espesso directamente à frente deles. No primeiro relance parecera um dragão alado, não, talvez uma qualquer máquina de guerra infernal, era imperceptível! A coisa vinha na direcção deles em grande velocidade deixando uma faixa de fogo luminoso a marcar toda a névoa em seu redor, algo surreal. A poucos braços de distância tornou-se impossível não discernir realmente o que era: simplesmente o cavalo do infeliz Bandag em pânico com o rabo a arder em chamas. Uma viga enorme de madeira maciça erguia-se horizontalmente montada no seu dorso. Suspensa e suportada por algumas cordas habilmente entrelaçadas em redor do pujante animal. A estrutura mantinha-se firme e seguia a meio braço da altura de sua cabeça. Em todo o seu comprimento e fixados com atilhos de couro eram distribuídos grandes fragmentos de metal e vidro afiados como navalhas, todos eles apontados ameaçadoramente para a frente. Umas verdadeiras asas de morte.
Mok, Bork e Trompp permaneciam estupefactos a olhar para o que ainda não tinham entendido muito bem, estavam tão absortos que não reparavam no imediato perigo de vida. Desenfreados, o macabro conjunto passou em avalanche e fez de imediato as suas três primeiras vitimas. Mok, um pouco mais afastado do que os seus camaradas do caminho da morte certa, foi apanhado de raspão e ficou com o braço decepado quase pelo ombro. Jorros de sangue vermelho muito escuro saíam como água numa fonte descontrolada, Mok soltou um grito de dor agonizante. Os seus companheiros não tiveram a oportunidade de gozarem esse grito pois eram apanhados ao mesmo tempo um de cada lado. Trompp, num último reflexo, ainda tentou saltar para baixo da sua montada, apenas para no acto ser perfurado por completo pelos cornos na cabeça da besta a galope. Num golpe poderoso de pescoço o animal atirou Trompp para cima e o Morte Lenta descreveu um arco acabando por bater em cheio de cabeça no chão rochoso desfazendo-se qual melancia madura. Bork, mais lento, foi apanhado pela viga em cheio, trespassado ao nível do peito pelas chapas e vidros afiados. Pendurado, tentava em vão empurrar a viga com ambas ao patas em direcção contrária. Com os abanões do galope desenfreado foi totalmente serrado a meio tendo ao cair ainda tempo de ver a parte de baixo aos trambolhões, espalhando entranhas e sangue por toda a parte. Entretando, Mok caíra e jazia ajoelhado no chão olhando estupefacto para a carnificina e afagando em pânico o coto em dores indescritíveis, morria lentamente esvaindo-se.
- Mm...mal...dito anim... - proferiu suas últimas silabas caindo redondo para a frente.
Enquanto o corpo de Mok espasmava mais acima, um capitão Rombbod olhava incrédulo para a chacina espalhada colina abaixo. Estaria a sonhar? Afinal, o estúpido do humano era ainda mais perigoso do que pensara, inventar um engenho desta natureza, quem iria imaginar? Sorte a dele ser inteligente, quando ouviu o primeiro grito horrível vindo da pequena força avançada algures acima ficara atento, algo corria mal, logo de seguida surgiu a "coisa" disparada do nevoeiro, maldito nevoeiro. Alertado, reagiu celere e atirara-se para baixo do cavalo fugindo ao terrível destino. O mesmo não aconteceu às suas tropas que por norma se mantinham dispersos em fila desorganizada atrás do chefe. Tinham sido poucos os que, apáticos, se safaram à ceifa. Alguns quedavam-se feridos no chão gemendo, morrendo, somente os mais atrasados tiveram tempo de reagir e riam-se como desgraçados dos camaradas moribundos. Ao capitão desta vez não lhe dava vontade de rir, a assunto estorna-se sério demais e nem os prazeres mais básicos o estimulavam. Convulsões nervosas assaltamvam-lhe o corpo todo e os olhos sob um semblante carregado reviraram-se fixando o nevoeiro colina acima.
O caso tornara-se pessoal.
-o-
O tempo urge, é de esperar que os monstros estejam agora mais furiosos que nunca. Foi um deleite ouvir aquele primeiro grito sobrenatural, grito de dor agonizante que eu provocara no primeiro demónio. Com um pouco de sorte terei apanhado mais quatro ou cinco, quem sabe? Um pouco de sorte. Morrei! Morrei como morreram os meus. Levarei para o inferno todos os que puder. A ideia surgiu-me naturalmente nem sabia bem como, tinha sido um desafio quase impossível domar o cavalo demónio, somente acalmou quando acidentalmente peguei no martelo de fogo, após alguns movimentos obedeceu-me cegamente, como que por temor. Ainda pensei fugir na besta, mas isso revelou-se inútil, o cavalo nem um passo deu e não tinha tempo a perder a perceber como o faria, era melhor seguir com o plano original. Mas esta arma tem realmente um poder e uma versatilidade espantosa, preciso ter isso em conta... ah, revigoro-me, apesar do cansaço que me invade, sinto que me revigoro cada vez que ouço um dos seus gritos em dor. Cansaço que não te vais, que não me largas, mas que agora teimo te combater. Mas é o espírito que me aflige, estilhaçado, necessito regá-lo com vingança. Um homem não foi feito para aguentar tanta amargura, tanta dor cravada no âmago. Mas preciso, é vital aguentar, por todos os meus e pela raça humana, matá-los-ei até não poder mais. E no ar sinto-lhes a fúria, a raiva. A caça continuará e só espero que o façam porque, pelos deuses, serão eles os caçados. Quem o diz é este homem, este que vós, criaturas do inferno, transformaram no vosso pior pesadelo!
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