Fikções, opinadelas e cenas que tais: 2008

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O Destino da Rocha

Abril de 98, acabara de escrever esta sobre um saltitante investigador interplanetário, um mero sketch, mas aqui fica:

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Zeco Mola fulminou com o olhar o operador de manobras enquanto se ajeitava desconfortável no cadeirão de vigia ao lado dele.

- "Grandes pedaços de pipocas" - pensou desviando o olhar para o exterior. - "Sim, é mesmo isso que parecem, enormes pedaços de pipocas flutuando lentamente para fora do alcance da vista" - concluiu.

Estava à tanto tempo naquela estação mineira que invariavelmente divagava sobre tudo o que lhe passava à frente dos olhos. Neste caso, referia-se naturalmente ao descomunal bloco rochoso projectado directamente para o espaço vazio à frente dele.

O operador fixou um dos monitores com ar azedo e verificou pela enésima vez que tudo estava em ordem. No topo Zeco leu escrito em abreviado a data de 14 de Março de 2088, tempo terrestre claro. Revirou os olhos ao fazer as contas de quanto tempo já tinha perdido naquele buraco. O homem vomitou uma praga e saltitou com os dedos pelos botões da consola esmurrando o último que teimava não obedecer, - raios partam! - resmungou - isto tá lindo! - Enervava-se mais pela presença de Zeco do que propriamente com o equipamento. Estava habituado à sua tarefa solitária e não lhe agradava nada que um tipo como ele ficasse ali horas a fio a observá-lo sem dizer pevide, era natural.
Esticando as pernas entorpecidas, o mercenário ficou a seguir a manobra através da pequena escotilha rectangular com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça. A invulgar rocha rica em diamante e metatitânio acelerou lentamente, passou o beiral protector da estação e acelerou pelo manto negro fora com os motores ligados em máxima força. Zeco dançou os dedos no seu monitor e ampliou a imagem 2 vezes rolando depois para 40 vezes perscrutando todo o asteróide, não encontrando nada fora do normal. 5 minutos depois o monstro ganhara velocidade de cruzeiro e os oito motores de impulso colocados estrategicamente na sua superfície rugosa foram-se desligando sequencialmente, par a par.

- "Uma vez mais..." - constatou frustrado mas firme - "nada a assinalar. Tudo muito normal, demais." - Desligou o monitor e pôs-se a simular mentalmente o trajecto que iria traçar a rocha espacial, coisa que já teria feito umas boas dezenas de vezes. Suspirou. O operador sentiu a sua frustração e esboçou um ligeiro sorriso, levantou-se e saiu desajeitado da sala de controle sem dizer palavra que fosse. Zeco ignorou-o, a sua frustração premeditada tinha atingido o efeito desejado. Olhou para a consola de controlo, o sinal de automático luzia intermitente iluminando fantasmagóricamente o canto direito da saleta. Agora estava tudo nas mãos do potente radar da estação mineira que iria fazer as correcções necessárias nos retromotores mantendo o asteróide na rota certa, tudo automático. Uns bons milhões de quilómetros para lá da orbita de translação de Marte à volta do Sol seria feita uma passagem de estafeta com o radar e computadores da estação central lunar, propriedade, tal como a estação em que se encontrava agora, da Companhia Mineira Terrestre, a CMT. A partir daí os "fatos" na Lua iriam ter o total controlo das operações e chegada ao seu destino, a rocha seria processada e enviada em milhares de pedaços já filtrados directamente para a Terra, mais precisamente para os vastos armazéns da Companhia no deserto de Atacama no Chile.

- "Aqui não se passa nada, definitivamente. O que na realidade aconteça à trampa dos asteróides nada terá a vêr com os procedimentos de extracção, acondicionamento e transporte" - rematou dando a sua investigação no local por finalizada. Levantou-se com um pequeno esgar e seguiu o mesmo caminho do operador.



A estação mineira escavada bem no interior do asteróide 44DIX9L na grande cintura de asteróides era constituída por três áreas principais ligadas entre si num emaranhado de corredores entrelaçados rocha fora. Duas delas, menores, ficavam num extremo mais protuberante da enorme rocha espacial, eram as áreas de dormitórios e a dos casulos de comando onde ficava colocada a saleta de onde acabara de sair Zeco. A terceira zona principal e de maior envergadura era o verdadeiro coração onde a maior parte do trabalhos se desenrolavam. Fala-se naturalmente do amplo complexo de docas e estaleiros da estação, onde o mercenário tinha o seu plano a correr sobre rodas, o seu derradeiro plano.

Ao passar um dos corredores de acesso semi vidrado conseguiu reparar pelo tecto na azáfama que decorria no exterior. O transito de maquinaria era infernal e estava a decorrer nesse preciso momento a preparação do próximo asteróide, dos maiores que se tinham visto até à data. Zeco queria inspeccionar os trabalhos de perto uma vez mais.

Era já o sétimo envio essa semana. A estação nunca antes tinha dado tanta produção; um por dia, o que em teoria era impossível. Veículos de perfuração e de reboque gemiam do esforço extra e o pessoal começava a queixar-se da sobrecarga e cansaço. Acidentes tornavam-se uma rotina e davam-se tanto na recolha como no transporte que se fazia dos asteróides circundantes para a estação. Claro que a CMT borrifava-se para tudo isso, a produção era o que interessava e a mão-de-obra facilmente se substituía.

A causa deste caos e da presença de Zeco naquele fim de mundo estava no desaparecimento dos asteróides algures na viagem de transporte para a Lua. Ninguém sabia como, mas eles simplesmente se esfumavam dos radares controladores, e não havia qualquer tipo de pista que levasse a resolver o mistério. Tinham sido gastos milhões na tentativa de descobrir o que se passava, grande parte empregues na contratação de pessoal especialista neste tipo de casos. Além das horas extra pagas às equipas de segurança da Companhia, contratara-se um exército de investigadores externos, a policia lunar, empresas militares de rasteio e tinha-se mesmo iniciado uma tentativa de negociações com a colónia renegada de Marte para a autorização e utilização da sua monumental rede de satélites-sonares, sem sucesso claro; o governo de Marte tinha dificultado as coisas até à data como era de prevêr. A guerra de independência com o governo terrestre em 2060 ainda estava em fase de sarar as feridas e falava-se à muito num novo corte de protocolos entre as duas potências. Desconfiara-se que o vizinho planeta vermelho estaria metido no misterioso desaparecimento e tinha motivos que chegassem para o fazer; além do ódio instalado desde o inicio da guerra e o seu término, havia o caso bicudo da exploração comercial da cintura de asteróides, pois em detrimento da sua independência Marte ficara apenas com uma quarta parte dos enormes pedregulhos para explorar.

A principio, aquando do fim da guerra, os marcianos esfregaram as mãos de contentes pelo óptimo negócio conseguido, claro que tinham pago um preço elevado com vidas e com as devastações no planeta que eram quase irreversíveis, mas tinham ficado com a sensação de que o saldo final valera a pena; engaram-se por completo. Os interesses da Terra por Marte já há muito se tinham desvanecido, muito antes da guerra estoirar e mesmo depois dos triliões gastos na sua Terraformação em que o ar marciano ficara respirável. A única utilização era o de servir como porto trampolim para a exploração dos afamados asteróides, o que a partir de certo momento nem para isso foi utilizado; ficava mais rápido e barato montar uma base no próprio local e enviar os asteroides directos para a Terra. Entretanto Marte continuara ilegalmente a minar os asteróides enriquecendo rapidamente com o mercado negro terrestre e a cidade mercante submarina instalada no oceano interior de Europa, a lua habitável de Júpiter. Com o tempo ganhara o estatuto de planeta-civilização e requerera a independência. A mãe Terra orgulhosa e traída, negou-a. A guerra foi declarada de imediato e meses de fúria desvastadora depois, acabara tão rápido como começara. Felizmente a estupidez do Homem chegara a um impasse e a Terra cedeu, não valia a pena aniquilar o seu semelhante ainda que fosse seu inimigo e traidor, era melhor aplicar uma lição de "moral" aos filhos renegados. Além disso, o que interessava era que Marte parasse de minar o raio dos asteróides e para isso, em troca da sua independência, os terrestres acordaram ficar com três quartos da concessão, marcando a zona com bóias sinalizadoras inteligentes.

O negócio do milénio, pensaram o Marcianos. A independência e um quarto dos asteróides era realmente algo de fenomenal, que sorte, mais do que eles alguma vez poderiam imaginar, claro que só era viável o transporte da matéria quando Marte passava na sua orbita pelos respectivos asteróides, mas mesmo assim era um optimo tratado. Regozijaram-se até ao momento em que sondaram o respectivo quadrante e verificaram que se encontrava quase estéril, empobrecido de matéria a extrair.

Os terrestres haviam conseguido engendrar um verdadeiro Tratado de Tordesilhas das estrelas, a verdadeira banhada do milénio! Tinham cortado completamente as pernas a Marte, agora impotente de se auto-desenvolver.

Pior de tudo, Marte não tinha capacidade suficiente para declarar nova guerra, significaria o suicídio. Estavam confinados ao seu planeta quase morto, às suas duas luas ainda mais mortas e a uma fronteira marcada paralelamente à orbita de Marte em relação ao Sol, tanto para o interior do sistema solar como para o exterior, exceptuando apenas o angulo de 90º em direcção aos estéreis asteróides.

O ódio agigantara-se e dadas todas estas circunstancias, restavam-lhes apenas a opção de dificultar de todas as maneiras possiveis a vida aos terrestres. Esta recusa de ajuda era só uma delas.

De qualquer maneira e não obstante serem o "suspeito" numero um, chegou-se à conclusão que não tinham nada a vêr com o caso dos desaparecimentos, pois a Companhia mantinha a fronteira bem vigiada com a ajuda da defesa terrestre, nada passava sem que se desse por isso. Zeco mesmo assim, tinha a sensação que estariam metidos no assunto.

Entretanto, com a confirmação ou falta de provas que o planeta vermelho não tinha culpa no cartório, a CMT estava bem ciente que Marte podia observar através dos seus sonares o que realmente se estaria a passar. Mesmo que isso não se verificasse, a colónia renegada concluira que a empresa terrestre não sabia o que eles realmente observavam. E a frustração de guerra fria, gelada, continuava, assim como o mistério dos desaparecimentos.

Bem, resumindo todos os factores até à data, a Companhia não tinha outro remédio senão simplesmente aumentar o número de envios para compensar os asteróides que desapareciam. Isso significava despesas catastróficas, mas por outro lado viam-se obrigados a satisfazer os pedidos de encomendas. Mudar o sistema de envio ficava monstruosamente caro, fora de questão, aliás nem tempo para isso havia, parar o abastecimento significaria o caos e a inevitável bancarrota no complexo e agressivo sistema económico terrestre. Até que finalmente chegou-se ao ponto de desespero de contratar homens como Zeco Mola, mercenários a soldo pagos com o seu peso em ouro, homens que não olhavam a qualquer meio para atingir os seus fins.

Zeco não aceitara logo de inicio, tinha sido escolhido devido à sua reputação de infalível, mas não lhe agradava muito meter-se em aventuras nos confins do espaço encravado entre pedregulhos. Por outro lado a situação financeira não era das melhores e não prometendo melhorar nos tempos vindouros; a concorrência estava forte. Aceitou relutante e mal chegara ao local, arrependera-se de o ter feito. Bem, nada a fazer e iniciou de muito mal humor as investigações.Entretanto atingira o ponto de frustração muito rapidamente sendo que todos os caminhos levavam a becos sem saída. Estava farto de rever todos os passos implicados no caso sem encontrar resultados de alguma espécie. Estudara os registos históricos de todos os asteróides desaparecidos e não encontrara nenhum padrão em comum, nenhum ponto chave que o levasse a seguir uma pista concreta. Apenas reparara que os asteróides que desapareciam tinham ligeiramente maior dimensão que os que passavam sem nada acontecer, isso não levava a conclusão nenhuma a não ser, claro está, que talvez houvesse realmente mão criminosa por trás; maior dimensão significava mais matéria de valor.

Mas agora, depois de tanto tempo gasto e tanta investigação em vão, ia jogar a sua última cartada.

Já anteriormente tentara executar um plano em que ele próprio escoltava um dos asteróides na sua nave mas o comandante da estação interditou-o de o fazer. Dissera o oficial que mesmo uma nave furtiva como a dele interferiria com a constante comunicação entre o ultra-sensível sistema de captação de sinais dos motores e o radar de navegação da estação, não havia maneira de o seguir ou acompanhar. Por isso é que existia o corredor espacial para uso exclusivo dos transportes de asteróides da Companhia. Além do mais, os Marcianos considerariam isso como um acto de guerra, pois segundo o acordo com a Terra somente os próprios asteróides tinham permissão de passar num corredor espacial de produção especifico através da fronteira de translação marciana. Os outros transportes e naves usavam um corredor espacial diferente, bastante mais largo.

Pôr sondas com câmaras de vigia que se ejectavam mal alguma anormalidade surgisse também não resultara, desapareciam elas também. O mesmo tinha acontecido com equipamentos de sinalização instalados tanto na superfície como no interior, eram programados para emitir sinais depois do desaparecimento. Nenhum funcionara até à data. Não, qualquer que fosse a tecnologia empregue, nenhuma dera sequer um minúsculo indicio que fosse e obrigou Zeco a enveredar por caminhos menos ortodoxos.



Revendo os passos de seu plano, passou pela última comporta estanque e viu-se quase a ser atropelado por um empilhador em excesso de velocidade.

- Raios! Mas vocês estão loucos! - gritou ao operário que somente respondeu levantando o braço direito e o dedo do meio da mão respectiva. Seguiu, misturando-se na confusão.

A área era um enorme cais de saída e entrada de veículos de transporte e assemblamento. Ali preparava-se todo o equipamento que posteriormente seria montado no asteróide. O movimento era de doidos e o barulho ensurdecedor.

Dirigiu-se à zona de instalação dos sistemas de motores apressando o passo, não fosse surgir outro condutor destravado.

O supervisor chefe Jonas Ribote afagava um servofoguete verificando a sua montagem tentando descobrir uma eventual falha no equipamento com ferramentas de diagnostico. Era um homem de fáceis relações de amizade e acatara logo a atenção do mercenário, que mal o conheceu viu nele uma futura oportunidade de aliança cultivando desde logo com ele uma amizade que se revelaria útil. Era uma bom homem, de confiança.

Zeco teve que tossir a bom som anunciando a sua chegada e fez-lhe um sinal subtil para que se reunisse com ele em particular. O supervisor respondeu com um piscar de olho e afastaram-se dos outros técnicos atarefados.

- Está tudo preparado? - perguntou Zeco ansioso enquanto se escondiam por trás de dois cilindros de combustível onde o barulho era aceitável.

- Sim, sim, mas diz-me uma coisa - respondeu Jonas em tom curioso - estás mesmo disposto a arriscar a pele nesta aventura suicida?

- Ò pá! Eu estar não estou, mas não tenho outro remédio, é a reputação que está em jogo tás a vêr? Falhar uma missão é declarar falência neste "emprego".

- Compreendo.

- O sucesso ou morrer a tentar consegui-lo - disse numa frase feita - este negócio não admite o meio termo.

- Porra não entendo vocês, mercenários, não conseguiria viver assim.

- Bem, é a vida, para mim não passa de sobrevivência e fuga ao raio do sistema. - Com estas palavras as feições de Zeco tornaram-se mais graves, não gostava de falar muito sobre filosofias de trabalho. - Mas de certeza que está tudo em ordem? - continuou mudando o rumo à conversa.

- Sim, acho que não falta nada, instalei a capsula camuflada exactamente onde tu querias, numa das faces laterais da superfície. Fiz uma ligação directa dos diagnósticos e restantes sensores à consola principal, motores incluídos. Depois... ah sim, perfurei o asteróide em quatro sítios diferentes e coloquei os detectores tectónicos como mandaste, estão também eles ligados à consola. Estranho pedido esse, pra que raio queres tu aquela tralha?

- Tenho as minhas razões. E o resto?

- Ok, tá bem, tu é que sabes. Quanto ao resto... tens um duplo sistema de suporte e manutenção de vida, penso que não irás ter qualquer problema com isso.

- Perfeito. E não te esqueceste das cargas de ejecção pois não?

- Não. Foi difícil instalá-las, o espaço era curto. Mas consegui colocá-las mesmo à risca entre os ganchos de suporte e o raio do asteróide perfurando um pouco.

- Óptimo, perfeito. Agora só espero que este asteróide seja um dos que desaparece, senão vai ser uma viagem em vão e passarei por idiota quando chegar à Lua, além de provavelmente ser preso.

- Já estou a imaginar a cara dos "fatos" ao descobrirem...

- Nem me fales. Rezo pra que seja um deles, por isso escolhi este.

- Sim é um dos maiores enviados até à data e está cheio de diamantes como um ovo - concordou Jonas.

- Lá se verá, bem, agora vais-me prometer uma vez mais que não dirás nada a ninguém, o sucesso desta missão depende disso. Se isto se sabe... o comandante corta-te logo as pernas, e a mim... o negócio.

- Não te preocupes, sou um túmulo. Eu quero é vêr esta gaita resolvida uma vez por todas, o trabalho mata-nos, isto é pura escravatura. Raio dos "fatos"...

- Conto contigo - rematou Zeco apertando a mão firmemente a Jonas - e obrigado.

- Ora, não é nada. Promete-me só que me porás ao corrente logo saibas alguma coisa, isto é, se não te perderes nalgum buraco negro - brincou.

- Trato feito amigo, até à próxima.

- Sim e boa sorte - desejou-lhe Jonas Ribote ao surgirem por trás dos cilindros. Aproximou-se dos seus técnicos e olhou para trás - vais precisar dela - proferiu ao vêr o mercenário escapulindo-se ao longe por uma das comportas.



Quinze horas mais tarde o operador de manobras tornou a saltitar os seus dedos pesados pelos botões de comando, assobiava, feliz com a novidade de não se encontrar ali o mercenário idiota do costume; o último botão voltou irritantemente a encravar e novamente sofreu um violento murro. Duzentos metros à sua frente, no vácuo gelado do espaço, um gigantesco asteróide com um mercenário como carga soltou-se das suas centenas de amarras e projectou-se lentamente em direcção ao grande portal da barreira protectora.

Zeco verificou satisfeito que o seu plano resultara em pleno. A capsula camuflada instalada por Jonas desempenhara o seu papel à risca e ninguém suspeitou da sua existência, era um protuberância mais na enorme rocha, o supervisor tinha feito um excelente trabalho. O seu próprio desaparecimento tinha também sido bem executado, para não haver problemas, programara sua nave em automático e fingira sua partida para a Terra, depois fez-se passar por um dos técnicos e penetrara na capsula quando os outros estavam atarefados fazendo os últimos ajustes aos motores.

Olhou para a consola e observou um dos monitores mostrando a retaguarda. Centenas de técnicos olhavam para o "seu" asteróide até que se foram tornando pontos minúsculos à distância. A enorme estação foi-se afastando e tornou-se gradualmente mais e mais pequena, dentro em breve seria apenas mais um grão de poeira no firmamento. Suspirou aliviado mas tenso, agora nada o poderia parar.



Zeco concentrou então todas as atenções no interior da capsula e na preparação da sua enfadonha viagem.

Apesar do fato espacial ser de grande dimensão era confortável e não o incomodava muito. Escolhera-o devido a essa faculdade e à sua variada instrumentação de apoio, já para não falar do seu altíssimo índice de segurança. Era bem possível que não fosse precisar dele, mas a sua longa experiência levava-o a tomar precauções redobradas em situações como aquela.

Como tivera cuidado na escolha do fato assim o fez também em relação à capsula. De forma oblonga e compacta era das mais resistentes que se poderiam encontrar em stock nas prateleiras da estação, albergava uma ampla escotilha de observação em se que poderia observar tudo em redor, inclusive uma grande parte do asteróide. Era constituída por uma liga de metatitâneo com aço super flexível, um resultado ainda mais duro que o diamante, com a capacidade extra de se poder dobrar em ângulos impossíveis sem quebrar. Além do mais e de importância fulcral, era de regresso automático.

Fez os últimos ajustes no sistema primário de suporte de vida e activou o secundário em stand-by. Depois foi a vez de ligar os incómodos desinibidores de musculatura, não gostava nada de os usar mas era um mal necessário devido ao longo tempo que iria permanecer sem gravidade.

Olhou para a consola dando uma última verificação aos dados que iam lendo os sensores, tudo estava nominal e apenas os sensores tectónicos tinham registado alguma actividade devido à vibração provocada pelos pequenos mas potentes motores instalados no asteróide, ordenou aos sensores para que filtrassem as vibrações dos motores e dos retrofoguetes que iriam ser utilizados pontualmente durante a viagem.

Programou o computador para o acordar algures perto da fronteira de Marte, era a partir dai que se davam os desaparecimentos dos asteróides. Preparou-se para finalmente hibernar e lembrou-se de repente que não tinha ligado o alarme ao seu fato - "que erro magistral" - pensou. Se acontecesse alguma coisa ainda antes de chegar ao ponto de acordar, não teria alguma hipótese. Fez uma careta perante tal pensamento e ligou-se ao sistema.

Estudou o espaço calmo à sua frente e sentiu uma profunda solidão acompanhada por uma nuvem de nostalgia. Relembrou a longa jornada que iniciara, claro que ia passa-la em estado latente, não daria por ela, mas por outro lado seriam uns bons seis meses que perderia da sua vida. Uma infinidade comparando com os sete dias que necessitava ao percorrer a mesma distância com a sua nave.

Finalmente conformou-se com a sua sorte e iniciou o sistema de latência. Submergiu lentamente na escuridão começando a sonhar que zarpara num mar imenso em cima de uma pipoca.



Zeco navegava à muito tempo ao sabor do vento num mar azul como nunca vira. A pipoca em que seguia luzia debaixo de um sol estranhamente brilhante, mudava suavemente com todas as cores do arco-íris. Pôs-se a pensar que nunca tinha visitado um lugar assim, tão calmo, cheio de paz e no entanto tão cheio de dúvida. Dias se passaram naquele ambiente tão pacifico, mas subitamente começou a pressentir que algo iria mudar. Sem aviso, as águas límpidas agitaram-se violentamente, numa miríade de circulos de ondas, o sol ficou vermelho de raiva. Por baixo da pipoca materializou-se um redemoinho gigante começando a girar em aspiral pulsando e engolindo violentamente Zeco. Este ia assistindo desesperado e impotente ao que se passava à sua volta, sentiu tudo a desmoronar-se na sua pipoca ouvindo sons horríveis e persistentes, mas de repente... de repente já não estava a sonhar. Viu-se a braços com uns olhos bem abertos e uma dor de cabeça do tamanho do asteróide por baixo dele. O alarme soava irritantemente e um dos monitores avisava que ia desligar por completo o seu fato do sistema de latência.

Instintivamente meteu o desinibidor de musculatura em ponto neutro e olhou para outro monitor, o de navegação, constatou que a sua posição estava nesse preciso momento a cruzar-se com a órbita de translação de Marte. Dentro da fronteira mas correctamente no corredor espacial de transporte da Companhia. Consultou a carta interplanetária e confirmou essa posição. Depois verificou o radar anti-colisão que não demonstrou nenhum sinal de perigo - "ok... quanto a isto não me preciso preocupar, e Marte ainda está bastante longe." - pensou aliviado - "mas porque diabo disparou o alarme?" - Fez uma vistoria a todos os sensores, tudo estava normal, nenhum dado avisador. No radar de longa distância estudou a zona circundante e também nada havia de anormal. - Mas que raio... - disse intrigado. Já não percebia nada, até que se lembrou finalmente dos sensores tectónicos. Ao passa-los para activo, notou que um deles, o que estava perto dos motores e de todo resto equipamento de propulsão, registava sinais de actividade no interior do asteróide, muito pouca actividade era certo, mas o suficiente para acrescentar uns tantos pontos irregulares aos valores nominais, um ritmo quase imperceptivel. Sem pensar duas vezes Zeco abriu a chapa protectora do sistema de ejecção e premiu um enorme botão vermelho. A cápsula disparou por baixo de uma explosão controlada das cargas ejectoras e viu-se a afastar rapidamente do enorme asteróide.

Acertara em cheio quando decidiu instalar os velhinhos sensores, uma ideia de última hora. Agora parecia que estavam perto de lhe salvar a vida. Zeco já tinha visto aquele tipo de registo anteriormente, quando se tinha embrenhado em missões militares obscuras pela Federação Terrestre, aquilo só poderia ser provocado pelos impulsos magnéticos de uma bomba de fissão!

A explosão que se deu de seguida veio confirmar a sua premonição. Feixes de luz branca emanaram do interior do asteróide rachando-o sem piedade em milhares de pedaços mais pequenos que iniciaram uma louca dança chocando violentamente entre si. Zeco, de início, tapou os olhos para não ficar cego com a luz intensa, mas depois pôde vêr claramente como todos os blocos expelidos voltavam, quase que por magia, suavemente a aproximar-se entre si. Era uma particularidade curiosa das bombas de fissão, o núcleo da explosão gerava um potentíssimo campo magnético que logo fazia implodir toda a matéria explodida pela mesma. A capsula salva-vidas teve o mesmo comportamento e um Zeco ainda zonzo pelo choque observou-a a gemer freneticamente com os seus pequenos motores, tentando fugir ao campo magnético para regressar automáticamente. O mercenário desligou-a de imediato e a embarcação ficou vagueando pelo espaço, chocando variávelmente com uma miriade de rochas brilhantes espaciais tão pequenas como a sua minúscula embarcação, uma pequena gota numa nuvem de asteróides.

Num instinto nato de sobrevivência o mercenário começou a fazer contas às opções possíveis e ao estado das coisas. Agora já sabia o que acontecia aos afamados asteróides: explodiam - "e quê?" - perguntou-se. Não entendia. No entanto não admirava como até agora nada tinha sido descoberto. Uma explosão de uma bomba de fissão não deixava nada para contar a história. Nenhum aparelho ou equipamento conseguia resistir à potente explosão e aos poderosos impulsos magnéticos.

Ficara marcadamente curioso com o acontecido, mas afinal porquê? Ansioso passou outra vez os olhos pelos monitores da consola e estudou-os por um momento.

- Mas claro! - quase que gritou olhando novamente para a carta interplanetária. Ligou num só movimento o sistema de comunicação da capsula apontando a pequena mas poderosa antena interior para estação mineira. Hesitou, pensou por um momento e decidiu-se a reajustar a antena. Não poderia arriscar uma comunicação para estação no asteróide 44DIX9L sabendo que poderia estar a falar com uma das pessoas implicadas na sabotagem, ou pelo menos passar a informação do que constatara. Por isso regulou o aparelho em direcção à Lua, havia mais hipoteses de sucesso.

- S.O.S. naufrago à deriva pede ajuda! - gritou esperando por um sinal. - S.O.S. naufrago à deriva pede ajuda à estação lunar da Companhia Mineira Terrestre! - Fez-se ouvir um ruído de estática seguido de sons imperceptíveis e abafados.

- S.O.S. Naufrago! - repetiu .

- Esta... lu... nhi... - uma voz, ainda que surgindo aos soluços, suou confortante aos ouvidos de Zeco que repetiu prontamente o pedido de ajuda por mais meio minuto possibilitando que equipamento fizesse os ajustes automáticos de correcção. Logo a comunicação ficou estável.

- Estação lunar da Companhia Mineira Terrestre pede identificação à embarcação em apuros - perguntou um técnico de comunicações em tom monocórdico.

- Soldado a soldo da Companhia com o nome de Zeco Mola pede permissão para falar directamente com o comandante da estação, motivo de importância crítica! - expeliu ansioso começando a repetir, - soldado a sol...
- Mas que diabo!?!? - surgiu uma voz mais grave. - Que raio está você ai fazer? Sabe o que isso significa? - Já tinham verificado a sua posição pelo sinal da comunicação.

- Olá comandante, um muito bom dia pra você também.

- Explique-se por favor. Já reparou que está para lá da fronteira? Estavamos à espera de um asteróide e não de um mercenário!

- Bom, é uma longa história e não tenho tempo de a contar agora - respondeu calmamente - peço-lhe entretanto que me faça um favor.

- Mas...

- Comandante, está em causa a resolução de todo o mistério do raio dos asteróides, por favor não complique e digne-se a enviar a seguinte mensagem para o alto comando terrestre - afirmou o mercenário olhando para o exterior onde uma multitude de pequenos asteróides brilhantes rodopiavam sobre si próprios.

- O alto comando? - perguntou o outro surpreendido.

- Sim - ripostou Zeco - é essencial, repito, essencial que uma esquadra armada esteja na data, hora e nas coordenadas que irei enviar de seguida. - Consultou a carta interplanetária e calculou trajectórias e desvios no computador, depois introduziu os resultados no sistema de comunicação. - Comandante, os dados estão a ser enviados neste preciso momento. Houve cinco segundos de silêncio quebrado de seguida por um comandante nitidamente perturbado.

- Mas isso fica... não se enganou?!

- Não discuta por favor, sei exactamente onde isso fica. O essencial é mais o tempo do que a localização.

- Bem, não lhe prometo nada, mas vou fazer os possíveis.

- Estou certo que sim, limite-se apenas a passar a mensagem, é do interesse de todos que o faça. Comandante vou terminar a comunicação, preciso de poupar o máximo de energia, bem vou precisar dela.

- Bem, ok, só me resta desejar-lhe boa sorte na sua missão, acho. Comunicação terminada.

Zeco desligou de imediato todos os sistemas desnecessários deixando apenas os de apoio e manutenção de vida, comeu alguma pasta energética e voltou a realizar todos os procedimentos para entrar em estado de latência. Enquanto o fazia pensava em como tivera sorte em lidar com a pessoa certa na estação. Se Jonas Ribote estivesse entre os sabotadores, a esta hora estaria concerteza vaporizado; teria sido fácil para ele sabotar os sensores tectónicos ou mesmo o suporte de vida.

Lembrou-se que poderia ter avisado a estação lunar das sabotagens a decorrer na base mineira, - "bem, mais pedregulho menos pedregulho... que se lixe" - decidiu. Programou o alarme e deixou-se cair no mundo dos sonhos uma vez mais. Um sorriso esculpiu-se na sua face, encontrava-se no mesmo mar calmo e pacifico do sonho anterior, só que desta vez não zarpara numa pipoca, não, desta vez nadava rodeado de milhares delas.



Dois meses depois Zeco voltou a acordar com uma dor de cabeça ainda maior que a primeira. Algo brilhava intensamente vindo do exterior e entre fortes esfregadelas de olhos, avistou a superfície avermelhada que representava... Marte!

O planeta cobria totalmente o angulo de visão do mercenário obrigando-o a escurecer a viseira do capacete. Olhou para o relógio na consola sorrindo, - data certa, tempo certo e lugar... - consultou a carta - o mesmo, correctíssimo! - disse congratulando-se a si mesmo, correra tudo como tinha previsto, a capsula deslocara-se apenas alguns quilómetros de onde estivera sessenta dias terrestres antes - agora só falta aparecer a cavalaria, onde estarão eles? Costumam ser de uma pontualidade militar extrema... - enquanto proferia a última palavra espreitando para o exterior, uma grande nave almirante cobriu imponentemente toda a forte coloração de Marte vinda de cima, obrigando o mercenário a ajustar novamente a viseira do capacete. Mais uma dezena de couraçados fizeram a sua entrada ameaçadoramente, rodeando a capsula e os asteróides, acompanhados por inúmeras naves de caça.

Sentiu um curto zumbido e a embarcação começou a mover-se lentamente, sendo atraída e engolida pela enorme estrutura da nave almirante, deixando para trás as milhares de rochas companheiras de sono do mercenário.

Meia hora mais tarde percorria apressadamente os amplos corredores e secções de côr metal escura da nave. Zeco perguntava-se a si próprio conforme os passeava, o quanto não implicaria fabricar um vaso de guerra daquela envergadura. Já estivera em vários navios militares, percorrera vários milhões de quilómetros em naves de grande porte mas nunca num porta estandarte como aquele, sentira-se uma insignificante formiga quando foi puxado para as suas entranhas.

Era escoltado por quatro soldados de elite que o conduziram a um grande salão de combate na ponte da meganave. No centro, ao redor de uma sólida mesa redonda viam-se sentados vários oficiais de alta patente, todos com ar de quem estavam a perder o seu precioso tempo.

Zeco parou junto à mesa por ordem do soldado que se encontrava à sua direita. No lado oposto à sua posição o almirante Barol Tarantil, como se podia lêr na lapela, jazia sentado numa poltrona maior que as dos outros. Pôs de lado o relatório que estava a lêr e franziu o sobrolho quando avistou o mercenário. Pelo olhar pôde-se constatar que não tinha muita amizade por comandos solitários como ele, e o aspecto degradante como se devia encontrar depois da sua atribulada jornada não ajudava nada.

- Muito bem - começou a falar com uma voz grave e controlada - deixemo-nos de rodeios e passemos directamente ao busílis da questão. - Deixava transparecer sem cerimónias o seu desagrado pela situação. - Soldado da fortuna Mola... Zeco não é verdade? - continuou olhando de soslaio para o relatório.

- Sim, almirante, esse é o meu nome - respondeu Zeco tentando não transparecer nenhum nervosismo.

- Espero sinceramente que tenha uma explicação sólida e concisa que justifique a movimentação de meia armada terrestre para este ponto tão crítico à paz do sistema. O alto comando terrestre teve que espremer toneladas de suor para apaziguar a fúria dos marcianos que consequentemente não estão nada contentes pela nossa posição dentro de suas fronteiras, tenho de confessar que foram estranhamente mais relutantes que o costume, mas repito, desdobre-se em bons argumentos mercenário!

Zeco manteve a calma e fez uma ronda com o seu olhar por todos os oficiais na mesa. Antes de tudo era essencial defender a sua frágil posição.

- Senhores, sabem de antemão que estou a soldo da CMT, hajo independentemente mas estou sobre contrato e protecção da dita instituição que, como sabem, é propriedade em cinquenta e um por cento da Federação Terrestre. Exijo que se faça respeitar todas as normas e direitos.

- Sim, sim, continue - ripostou o almirante.

- Seja então. Cavalheiros, tenho de lhes informar que poderia ter-vos avisado muito mais cedo, mais precisamente à dois meses atrás quando descobri tudo. No entanto achei de importância crucial ter-vos no local-prova para não haver dúvidas algumas sobre toda esta trama. - Todos o olharam com ar curioso, continuou confiante: - meus senhores, a culpa do mistério dos asteróides... é dos marcianos.

O salão de combate entrou em burburinho de imediato, a noticia tinha soado quase como uma incómoda e inesperada bomba.

- Isso é uma acusação muito grave soldado. Como chegou a essa conclusão?

- A prova está neste preciso momento lá fora... no lugar onde ainda há pouco se encontrava a minha cápsula. Peço que façam uma leitura à chuva de asteróides que vagueiam no exterior.

O almirante deu a ordem que logo foi executada, momentos depois um dos oficiais colocado ao seu lado repetiu o que ouvira no seu auscultador - metatitâneo e diamante senhor, na sua maioria.

- Está a querer dizer que o que está lá fora é um dos asteróides? - concluiu o almirante.

- Cem por cento correcto - afirmou Zeco - é um dos asteróides, a prova viva do maior roubo da história meus senhores.

- Mas como? Como veio parar aqui e o que lhe aconteceu?

- Muito simples. Alguém na estação mineira sabotava o asteróide com uma bomba de fissão...

- Um bomba de fissão? Mas que raio! Isso está na lista das armas interditas à duas decadas! - exclamou um oficial de côr negra.

- Exactamente. - concordou Zeco. - por isso ninguém se lembrou delas.

- Mas isso não explica o resto, como aquele aglomerado veio parar aqui? - desafiou outro com ar de oriental.

- O resto... o resto é obra prima do furto meus amigos. Se repararem a posição dos desaparecimentos fica sempre perto da orbita de translação de Marte, mais milhão menos milhão de quilómetros, correcto? Pois bem, o resto a que o senhor se referiu - apontou para o amarelado oficial - a natureza e as leis da fisica encarregam-se por si mesmas do assunto, ou ainda não entenderam? Passo a explicar, ao ser transformado em milhares de pedaços mais pequenos o asteróide fica indetectável aos radares da Companhia, consequentemente "desaparece". Mas na verdade está lá, talvez com umas gigatoneladas a menos, vaporizadas, mas está definitivamente lá. Com a ajuda do campo magnético da explosão, todos os escombros do asteróide em rotação sobre si proprios permanecem no mesmo lugar do espaço em que se dá a sabotagem. Sendo assim, o que será mais fácil do que esperar pacientemente, e no meu caso foram cerca de dois meses, que Marte siga a sua trajectória orbital, e quando passe por perto da "mercadoria", atraia naturalmente com a sua gravidade a maior parte ou mesmo todos os pedaços? O chamado fenómeno "estrela cadente" resumindo; pequenos corpos ou lixos celestes que são atraidos para as orbitas dos planetas e que com tempo caem na superficie, era exactamente o que estava para me acontecer quando me apanharam. Metatitâneo e diamante concerteza não se desfazem ao entrar na leve atmosfera marciana, certo? Os marcianos usando a sua rede de satélites-sonares, fazem sem esforço o seu rasteio e recolha com precisão cirúrgica. Resultado meus senhores: não movendo virtualmente um dedo, encenam um roubo limpo, sistemático e eficaz, quase sem sujarem as mãos.

Nesse momento todos na sala olhavam fixamente para Zeco, pasmados, sentiam-se como a criança a quem lhe foi retirado o sorvete. Realmente era um plano tão genial e tão simples que fizera passar toda a gente por idiota.
O almirante finalmente quebrou o silêncio e levantou-se ordenando a recolha imediata dos pedaços de asteróide e para tomarem todas as devidas providencias para que futuramente não acontecesse o mesmo. Levantou-se e dirigiu-se para o mercenário cumprimentando-o.

- É um grande peso que nos tira de cima soldado. Perdão se fui um bocado inconveniente na nossa apresentação, mas tem de compreender.

- Sem ressentimentos almirante.

- Concerteza que a Federação Terrestre e a Companhia lhe irão recompensar devidamente mas diga-me, você daria um óptimo oficial não se quer alistar?

Zeco olhou fixamente o homem à sua frente, estudando-o, respondendo depois de uma pequena pausa de silêncio: - Talvez um dia, talvez um dia. Agora só necessito de um bom banho e repouso numa cama de verdade, se fosse possível claro, era o meu único desejo... Ah! E se não fosse pedir demasiado, que alguém me desse uma boleia para a Terra.

- Concedido. Tenente?! - chamou. - Por favor trate da devida instalação do soldado Zeco Mola! Estatuto VIP.

- Não era preciso almirante...

- Insisto soldado - disse começando a afastar-se - você merece. E agora se me dão licença preciso de fazer uma comunicação urgente ao alto comando terrestre.

Zeco embrenhou-se novamente nas entranhas da meganave pensando na choruda recompensa a que teria direito, mas antes de tudo, sumariava como aquilo tudo iria mudar o curso da História. Com a descoberta, Marte impotente perderia concerteza as suas fronteiras e o estatuto de planeta-civilização. Ficaria subjugada novamente ao poder da Terra como uma mera extensão ao seu império. Caso contrário, se oferecessem resistência, nova guerra seria inevitável e a aniquilação do planeta uma triste realidade.

Independentemente do futuro resultado, Zeco iria ser citado como o homem que despoletara a mudança, idolatrado por muitos e odiado por outros tantos. Mas isso nada importava, felizes dias se avizinhavam e ele pensava passá-los da melhor maneira. Talvez comprasse uma quinta na Terra, onde pudesse ter um campo de milho e fazer pipocas, muitas pipocas, riu-se.

Abril, 98

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Guerreiro

1ª parte

Espero que eles cheguem. Sou o único, o último, só posso ser. Tanta preparação, tanto treino, para quê. As melhores armas do império manejadas pelas mãos dos guerreiros mais experientes, dos mais sábios generais marcados por décadas de batalhas. Cortados, trespassados, feitos em pedaços, todos e cada um deles. Os meus amigos mais chegados, companheiros de luta, os guerreiros mais formidáveis que eu amava como irmãos. Torturados, espezinhados por armas e garras vendidas ao diabo. Agora só estou eu. Exausto, quase sem forças para continuar a lutar por algo que se encontrava perdido à partida. Foi uma ilusão pensar que teriamos alguma hipótese, uma ilusão, pelos deuses, uma ilusão, algo forjado por centenas de anos de arrogante superioridade... deuses como estavamos errados! Estão perto, sinto-o, andam por aí. Mais cedo ou mais tarde vão-me encontrar e sem misericórdia, cortar-me-ão em dois como uma faca o faz ao fruto maduro. Mas que importa, façam-no, já não tenho vontade de viver, agora não. Perdi tudo. Irei morrer sim, irei morrer mas malditos sejam lutarei até até à última gota de força vital que me reste. Nem sei quantos eliminei, não, não faço a mínima ideia. A minha espada, esta que agora me serve de apoio à testa aqui ajoelhado, encontra-se embebida em sangues impossíveis. Eles são tantos, infinitos. Atacam como nunca vi, em grupos ferozes e assassinos. Membros de dois metros esfacelando e esmagando entre martelos de fogo carbonizando armaduras, músculos, carne, ossos, tudo! Mais de vinte para cada um de nós. Infinitos. Sinto-me tão cansado, exausto. E a minha querida Ilyann, ó minha querida Ilyann. Ao menos que te encontre para onde vá quando me trespassarem. Bem me lembro de teu rosto de linhas suaves, minha princesa de todo o sempre. Que saudades. Ai a raiva que me invadiu a alma, que me tornou azedo e enegrecido quando te encontrei já sem vida. O teu vestido branco, tingido todo ele de encarnado. Extinguiste-te nas mãos da cobardia da espionagem, sem defesa, sem hipótese alguma. E eu, inútil, longe de ti, sem te poder proteger, nem um último beijo te dei. No momento que te encontrei só queria morrer e a única coisa que mo impedia de o fazer era a sede de vingança. Despedaçar os responsáveis por esse acto cruel, horrendo. Tê-los nas minhas mãos e tirar-lhes o cérebro pelos orifícios dos olhos depois de lhes esmagar todos os membros do corpo... ah... tão cansado que estou. A minha armadura desfaz-se de tantos golpes aparados. O meu escudo, já não o tenho, encontra-se algures enfiado entre as costelas de um deles. Malditos, hordas do diabo. Consigo sentir-lhes o cheiro nauseabundo, rondando os escombros, rondando-me a mim, pois também me sentem, aqui ajoelhado, iludindo a morte aos poucos. Os ideais que defendia desvanecem-se, apagam-se. Todos estes anos de vida mantendo o Bem num pedestal, julgando-o invencível, indestronável, um campeão. Que enganado eu estava. O Mal é superior a tudo, sei-o agora. Malditos. Corroem-me por dentro e vão-me destruir por fora, inevitável fado. O Mal. Como é possível? Pelos deuses, como é possível!?!?

-o-

Algures entre os despojos de uma batalha de proporções sangrentas colossais, uma patrulha de Mortes Lentas procurava ávidamente pelo último dos guerreiros humanos. Eles e o resto do exército tinham dizimado por completo as tropas desses animais fracos e ridículos. O cheiro a sangue fresco punha-os ainda mais ansiosos, sedentos por matar. Necessitavam de trespassar, torturar, dilacerar, tanto como respirar ou comer, era o objectivo sublime da sua existência. Isso e servir o seu mestre, o Lorde do medo.

Viravam e revolviam tudo na esperança de encontrar o rato humano primeiro, antes das outras patrulhas de Mortes Lentas. As tropas divertiam-se com a tortura dos animais feridos mas estes não durariam muito e logo se voltariam para o que restava. Incumbidos da missão de o encontrar a rapidez tornava-se então crucial, teriam assim o animal só para eles, um prémio que bem mereciam.

Entretanto espantavam-se como um só animal humano havera morto ou ferido tantos deles. Ele e seus companheiros de luta tinham sido incrivelmente difíceis de eliminar. Não como o resto do exército humano, não, esse tinha sido dizimado como um maço de palha seca num vento ciclónico de fogo. Simplesmente esmagado. Agora estes animas, estes em particular eram diferentes. Lutavam com a raiva e o ímpeto de quase deuses. Era incrível verificar, mesmo para um Morte Lenta, a ferocidade e a técnica desta pequena força prodigiosa. As espadas quase tão grandes quanto eles próprios, e no entanto nas suas minúsculas e frágeis garras pareciam tão leves como madeira. Que destreza, que força, dava a impressão de serem imortais e invencíveis, isto claro, até começarem a sucumbir inevitavelmente um por um, perante um número sem fim de Mortes Lentas.

- Ali Bandag! Cheira ali! - Arfou Rombbod, capitão do pelotão de cheiro Gulla no alto do seu cavalo do Inferno - Ainda não cheiramos esse sector! Acabando este quero um relatório imediato desse!

- Arf! - Obedeceu lenta mas decididamente o soldado batedor Bandag.
Usavam os seus martelos como detectores de vida animal apontando-os para o efeito em todas as direcções. Se por acaso alguma forma de energia vital ficasse ao alcançe suficiente do enorme maço, por mais tenue que fosse, logo o seu fogo se atiçava, ansioso por carne fresca.

Bandag percorreu o espaço indicado por seu capitão com a ferocidade habitual, revolvendo tudo à sua passagem, deitando abaixo com a sua montada qualquer obstáculo que pudesse albergar um inútil humano. A zona era uma pequena colina de inclinação média onde surgiam dispersas no topo várias construções excessivamente destruídas, não passavam de escombros envoltos por um etéreo nevoeiro espesso.

Chegou triunfalmente ao cimo, imperturbável, onde imediatamente o cavalo atrapalhado quase sem visão devido ao nevoeiro tropeçou numa perna cauterizada e fez cair o cavaleiro de frente no meio de um monte de ossos e vísceras originando uma confusão grotesca.

- Urgh! - Soltou fazendo uma careta. - Merdosos animais! Pena não estarem vivos.

Levantou-se e parou abruptamente, estático como um cão de caça. Olhava para o seu martelo atiçado repentina e ligeiramente. Na direcção indicada pela arma erguia-se o que fora uma velha casa de pasto, com as vigas do teto erguendo-se imponentemente entre o telhado em ruínas.
Surgiu um enorme sorriso na sua grotesca cara mostrando quatro fiadas de dentes afiados e podres pela metade.

- Animal, agora não me escapas - disse agarrando o pesado maço com ambas as garras.

Deixando o cavalo para trás iniciou uma lenta marcha com todos os sentidos alerta, algures nesses escombros encontrava-se o animal humano. Espreitou por trás da primeira viga que se aproximou da sua batida. Nada. Bem, lá teria que procurar em todas elas... continuou.

Entretanto cá em baixo o resto do pelotão já há largos momentos vira o seu colega embrenhar-se entre a névoa, mas tardava reaparecer. A inquietação invadiu as hostes, paciência não era o forte dos Mortes Lentas e indagavam já nervosamente entre si.

- Capitão! Capitão! - Aventurou-se o sargento Mok. - Eu não queria tirar conclusões
precipitadas mas, o Bandag já desapareceu à um bom pedaço não é?

- Sim! - Concordou Rombbod ásperamente.

- Então... e se ele estiver neste preciso momento a divertir-se sozinho com animal? Era um bocado injusto não acha?

- Basta!!! Silêncio! Não quero ouvir mais estrume a sair por essa boca fora!!! - Rugiu o capitão abanando o seu martelo em todos os sentidos, Mok apenas teve tempo de se baixar para não levar com a pesada arma mesmo no meio da testa.

Retirou-se arrependido por ter aberto a bocarra afagando o pêlo da cabeça meio queimado.

Momentos mais tarde um impaciente capitão Rombbod talhava no chão um vale com o seu peso num vai-e-vem constante. Barafustava consigo mesmo batendo regularmente num ou outro soldado que se encontrava à mão de dar porrada.
- Pelotão às armas! - Grunhiu acabando-se-lhe a paciência. Mentiu, não deitando por terra o orgulho próprio: - nosso camarada batedor poderá correr perigo de vida por isso teremos de ir em seu auxilio! - melhor não poderia ter dito - estripemos todos juntos este último inimigo!

Que maravilha, todos se apressaram a iniciar a debandada, ávidos de sangue. À frente, o capitão na sua montada guiava a manada jurando a si próprio que se encontrasse o raio do batedor divertindo-se sozinho dava-o de comer ao cavalo depois de o esmagar com o martelo.

Soldados e respectivas montadas martirizavam a terra já torturada pela batalha anterior, imponentes nos seus sons triunfantes de guerra. Armas abanando batendo em armaduras. Cascos chocando em pedra esmagando-a em estilhaços e fumo. Uma visão aterradora para qualquer inimigo que fosse. E no entanto, a uns meros metros do inicio da subida pararam. Apalermados. De um momento para o outro viram-se a cruzar com uma cabeça decapitada a rolar aos solavancos colina abaixo. A cabeça de Bandag com um grande sorriso talhado de orelha a orelha.

-o-

Morrei cães! Morrei todos! Que prazer este de perfurar incessantemente o corpo odioso do monstro. Que loucura esta a que me invade. Que loucura. Mas não consigo parar, a minha fúria não tem limites, não se vai enquanto trespasso vezes sem conta esta enorme massa disforme. A vingança é mais forte que tudo o resto, tolda-me o corpo, invade-me a alma. Como eles são horrorosos. Em batalha não há tempo nem espaço para dispensar em observações deste tipo, mas agora... posso ver como são horríveis. Criaturas do demónio. Pára maldito pára, não te deixes levar pela loucura. Poupa as forças para levar mais alguns contigo para os infernos. Nem queria acreditar quando vi a estúpida criatura espreitar numa das vigas do meu esconderijo. Tinha-o visto chegar quando reparei na claridade provocada pelo seu martelo e no barulho que fez. Imbecil, foi como se dissesse "estou aqui, mata-me". A um escasso comprimento de três braços foi só levantar a espada e reparar como voava a sua cabeçorra num arco por entre a névoa. Estúpido. Concerteza seria um batedor, algures lá fora estaria uma patrulha à minha procura ou mesmo um batalhão inteiro, ouvi claramente a parafernália que se fez soar a sul. Pois podeis vir, todos vocês, cães imundos. Vinde encontrar a morte na minha espada. Porque eu não tenho medo de morrer.

-o-

Algures mais abaixo...

- Sim capitão. É mesmo o Bandag - disse o soldado Mollek erguendo bem alto a cabeça do seu ex-colega de armas. - Não há dúvida.

Dizendo estas palavras deixou-a cair chutando-a com força para longe. Todos, inclusive Rombbod, soltaram uma gargalhada. Não era bem do estúpido gesto de Mollek que se riam, não. Aliás, era normalíssimo este tipo de comportamento e desprezo entre os da sua espécie, chegavam mesmo a torturar os seus próprios feridos pelo simples prazer de os ouvirem gemer. Não, na verdade pensava no seu intimo que afinal ainda teriam a oportunidade de chacinar e gozar com o merdoso do último animal.

- Bem, bandalhos, preparai-vos para continuar a debandada. De uma coisa temos agora a certeza - afirmou Rombbod.

- O quê capitão? - Perguntaram ignorantes alguns em quase em uníssono.

- O quê?! Vocês ainda perguntam o quê idiotas? Agora temos a certeza que o porco do animal está encurralado lá em cima! Isto é, se não nos despacharmos a cercar a colina - respondeu frustrado e tentando olhar entre a névoa mais acima.

Acenaram todos em concordância, comentando entre eles o altíssimo quociente de inteligência do seu magnífico capitão.

- Tronk, Norr! Contornai o perímetro e patrulhai o lado norte da colina! - Comandou.
- Bollo, Lombbad! Lado este! Bardonka, Rokk! Oeste! O resto fica tudo aqui comigo na frente sul. Nós continuaremos a debandada. O animal não terá por onde fugir.

As unidades escolhidas lá partiram cercando todo o perímetro da colina resmungando nomes ininteligíveis, qualquer coisa que se traduzia no azar de ficarem à seca enquanto os outros se divertiam com o humano. Malvada sorte.

-o-

Cansado. Sinto-me tão cansado. Envelhecido. Será que vale a pena continuar? Recuperei um pouco de força de vontade com a morte do estúpido demónio, mas agora que passou a raiva... já não sei. Os outros estão mais perto, prontos para a chacina, sinto-o. Ouvi à pouco vários cascos a galope ao longe em todas as direcções, cercando-me, depois, nada. Silêncio novamente. Terá chegado a minha hora? Um ataque em força e não terei a mínima hipótese. Momentos tive no passado, momentos, em que era um jovem e parecia ter o mundo em minhas mãos. Insensatez, julgava-me invencível, nenhuma situação me travaria. Lembro-me perfeitamente, eu e os meus camaradas nas suas armaduras a brilhar sobre um sol de primavera. Um juramento ritual de guerreiros novinhos em folha, por estrear. Prometíamos defender o império com as nossas vidas, e nós orgulhosos sentiamo-nos invencíveis. Invencíveis... ironia, mal sabíamos nós o que o futuro nos reservara. Se ao menos nos tivéssemos preparado melhor. Mas como? Éramos a elite. A nata dos guerreiros deste planeta. Aqueles em que o treino eram verdadeiros combates nas frentes de defesa do reino, todos os dias. Que mais poderíamos fazer? Ser-mos deuses?

Um barulho...

Sim foi mesmo um baque seco por trás da terceira viga. Serão eles finalmente? Mas não vira nenhum clarão de seus martelos. Outro batedor? Improvável. Não são tão estúpidos, assim como não serão tão espertos de iniciarem um assalto sem os seus martelos acusadores de sua presença. Mas espera, ah, só pode ser. Uma rápida espreitadela e... sim, claro. O cavalo do inferno do demónio morto. Imponente e grave. Esperando obedientemente que seu amo volte. Que animal poderoso, de músculos largos e firmes, todo negro como a noite mais escura sem luar. Não possui crina mas em compensação é dono de um longo rabo acetinado. Os demónios enfeitam-nos com máscaras de longos cornos afiados, assim como armaduras com mais picos no peito e nas colossais patas. O que mais salta à vista no entanto são os seus olhos totalmente negros, sobrenaturais, por momentos e em jogos de sombra, dissolvem-se na negridão total do pêlo da cabeça dando origem a uma besta sem olhos, aberrante. Saltam à minha memória imagens de quando os monstros surgiram em filas infindáveis daqueles cavalos iluminados pelos maços de fogo dos seus cavaleiros, rugindo em barulhos ensurdecedores num trote de guerra. Dezenas dos nossos soldados não aguentaram a visão aterradora e fugiram, completamente aterrorizados. Dadas as circunstâncias era compreensível, tinham-se deparado com um quadro pintado pelo próprio senhor das fornalhas. Que loucura. Onde os humanos tinham errado para merecer tal destino? Tal adversário em quantidades intraduzíveis? Força pura de ataque. Bruta, brutal. Vantagem descomunal sobre o inimigo. São organismos com um só fim, viverem para ser máquinas de guerra. Matar, matar, destruir. Nenhum cantar pela vitória e nem pela bandeira conquistada, nenhuma estratégia de ataque, nenhum plano de defesa, nada. Somente ir em frente e matar, destruir, morrer e continuar a matar. Mas porquê? Não há resposta e se calhar nunca a irei ter. Injustiça dos deuses, do Bem que tão acérrimamente e fielmente servi. A vida como o homem a conhece desmoronou-se como estas vigas arrancadas da estrutura do edifício. Estas vigas...

-o-

Rombbod colocara apressadamente o seu capacete de guerra logo após a ordem de continuar a debandada, não fossem os deuses tecê-las. O resto do pelotão protegeu igualmente os seus pescoços com os anéis couraçados a que tinham direito. O capitão ficara mais aliviado por saber que o animal estaria inteiro, não, melhor ainda, talvez estivesse ferido e não lhes desse muito trabalho a capturar para posterior tortura. Claro que ele teria a honra da primeira agonia, até se lhe arrepiavam os pêlos das felpudas orelhas por imaginar tal imagem de prazer.

Passavam agora por um par de carroças viradas, emergiam alguns braços e pernas debaixo delas. Ao longe conseguia discernir vagamente os outros Mortes Lentas a tapar o caminho de fuga, perfeita estratégia. Estavam quase a meio da subida onde o nevoeiro se adensava mais tornando a visibilidade gradualmente a chegar ao uns meros dez braços.

Ergueu o punho.

- Alto! - Ordenou ao batalhão.

A imagem era mais forte que seu desejo. A cabeça de Bandag a rolar colina abaixo não lhe saía da cabeça. O raio do animal era perigoso, demasiado perigoso. Não era à toa que tinha sido o único sobrevivente dos da sua raça. Havia a necessidade de redobrar as atenções, ainda para mais ele ia à frente da debandada e tinha amor ao seu querido pescoço.

- Mok, Trompp e Bork! Coloquem-se meio espaço à frente e tentai detectar qualquer movimento entre a névoa! - Disse em tom imperativo. - Qualquer cheiro, contacto visual ou sinal de martelo gritem! Ouviram? Gritem com todos os vossos pulmões! Nós faremos logo de seguida a investida e aprisionaremos com o maldito animal!

"Perfeita estratégia novamente", disse para si próprio. Assim garantia a sua segurança e não punha em perigo a sua exclusiva tortura ao animal.

- Em frente! Marcha lentaaa... Frente! - Comandou.

A debandada recomeçara. Triunfante, o capitão regozijava com a sua imensa inteligência. Baba descia-lhe pelo queixo manchando o dorso do cavalo.

Mais ou menos meio espaço mais à frente três Mortes Lentas tremiam com o futuro incerto de seus pescoços. Tal como o capitão a imagem da cabeça do seu ex-camarada ainda pulsava nos seus cérebros.

É de importância maior dizer que um Morte Lenta com medo é um Morte Lenta com os sentidos duplamente sensíveis. Colocavam-se lado a lado pois a unidade fazia a força e força era a única coisa que tinham a seu favor, o formidável sucesso dos seus exércitos resumia-se a essa estratégia. O bicho poderia acabar com um ou mesmo ferir mais dois ou com sorte três, mas acabar com quatro ao mesmo tempo é que não. Impossível. Portanto, quanto mais juntos estivessem, melhor. A névoa conquistava o espaço em redor, cada vez mais densa. Mok olhou para trás. Deixara de distingir os contornos do seu superior tempos atrás enquanto se afastavam, cerca de um quarto de espaço mais abaixo. Agora, nada se via. Piorando a situação, a humidade entranhava-se como um peganhento parasita nas potentes narinas dos Mortes Lentas anulando qualquer tentativa de reconhecimento utilizando o método olfativo. Mais a visão encurtada as capacidades dos três batedores ficavam reduzidas ao martelo e à audição que, diga-se, não era das melhores.

- Hu! Parece que ouvi qualquer coisa - disse Bork. - Pareceu-me mesmo ouvir qualquer coisa.

Os três cavaleiros pararam ao mesmo tempo.

- O quê? Onde? - Perguntou Trompp esticando a cabeça para todos os lados, olhos esbugalhados, - não consigo ver nada.

- Eu também não - replicou Mok.

- Mas que ouvi, ai isso é que ouvi. Corte os meus bedolms fora se não ouvi - continuou Bork pondo a pata por trás da orelha. - Agora!! Ouviram?! Uma série de sons surdos seguidos parando de seguida!

- Bem, por acaso até ouvi alguma coisa - concordou Mok. - Mas não consigo distingir o quê. Trompp?

- Nem por isso, vocês estão é a ouvir o nevoeiro a bater nas vossas orelhas. - zombou, nervosamente.

- Bahrggh! Não sejas camelo e ouve melhor! - Soltou Mok.

Trompp ergueu ainda mais as orelhas denotando impaciência, notava-se a frustração esculpida na sua face.

O silêncio imperou. Nada.

- Vocês devem estar a gozar. Estamos a perder um tempo precioso aqui à espera - queixou-se Trompp.

Ouviu-se outro som, depois nada novamente. E então ergueram todos de uma vez o sobrolho, dessa vez ouviram bem e o trio de Mortes Lentas num reflexo levaram as patas às respectivas gargantas. Engoliram em seco.

- Vês?! Vês Idiota?! Ouviste ou não ouviste? Estica-me essas orelhas! - Ordenou Mok suando por todos os poros.

- Bosta e tripas de javali! Não se vê nada! Se ao menos o raio da névoa levantasse - disse nervosamente Bork.

Cada vez que tentavam penetrar o olhar no denso nevoeiro, este parecia que se fechava ainda mais, tornava-se uma situação insuportável mesmo para os super-destemidos Mortes Lentas.

- Não estou a gostar nada disto, e... e se fossemos para trás? - Tentou Trompp - Podíamos dizer ao capitão que não encontramos nada. - rematou começando-se a ouvir os cascos dos companheiros que se aproximavam na retaguarda.

- E achas que ele ia na conversa palerma? Ainda para mais com o perímetro todo coberto, como é que achas que não encontraríamos nada? Seu esterco!

Mok ficava farto do seu companheiro. Tanto gozava como a seguir ficava literalmente borrado de medo. Não merecia viver, uma torturazinha, ah uma torturazinha...

As suas agradáveis divagações desvaneceram-se por completo no momento exacto em que "aquilo" começara a surgir do nada, numa sombra, cuspido do manto espesso directamente à frente deles. No primeiro relance parecera um dragão alado, não, talvez uma qualquer máquina de guerra infernal, era imperceptível! A coisa vinha na direcção deles em grande velocidade deixando uma faixa de fogo luminoso a marcar toda a névoa em seu redor, algo surreal. A poucos braços de distância tornou-se impossível não discernir realmente o que era: simplesmente o cavalo do infeliz Bandag em pânico com o rabo a arder em chamas. Uma viga enorme de madeira maciça erguia-se horizontalmente montada no seu dorso. Suspensa e suportada por algumas cordas habilmente entrelaçadas em redor do pujante animal. A estrutura mantinha-se firme e seguia a meio braço da altura de sua cabeça. Em todo o seu comprimento e fixados com atilhos de couro eram distribuídos grandes fragmentos de metal e vidro afiados como navalhas, todos eles apontados ameaçadoramente para a frente. Umas verdadeiras asas de morte.

Mok, Bork e Trompp permaneciam estupefactos a olhar para o que ainda não tinham entendido muito bem, estavam tão absortos que não reparavam no imediato perigo de vida. Desenfreados, o macabro conjunto passou em avalanche e fez de imediato as suas três primeiras vitimas. Mok, um pouco mais afastado do que os seus camaradas do caminho da morte certa, foi apanhado de raspão e ficou com o braço decepado quase pelo ombro. Jorros de sangue vermelho muito escuro saíam como água numa fonte descontrolada, Mok soltou um grito de dor agonizante. Os seus companheiros não tiveram a oportunidade de gozarem esse grito pois eram apanhados ao mesmo tempo um de cada lado. Trompp, num último reflexo, ainda tentou saltar para baixo da sua montada, apenas para no acto ser perfurado por completo pelos cornos na cabeça da besta a galope. Num golpe poderoso de pescoço o animal atirou Trompp para cima e o Morte Lenta descreveu um arco acabando por bater em cheio de cabeça no chão rochoso desfazendo-se qual melancia madura. Bork, mais lento, foi apanhado pela viga em cheio, trespassado ao nível do peito pelas chapas e vidros afiados. Pendurado, tentava em vão empurrar a viga com ambas ao patas em direcção contrária. Com os abanões do galope desenfreado foi totalmente serrado a meio tendo ao cair ainda tempo de ver a parte de baixo aos trambolhões, espalhando entranhas e sangue por toda a parte. Entretando, Mok caíra e jazia ajoelhado no chão olhando estupefacto para a carnificina e afagando em pânico o coto em dores indescritíveis, morria lentamente esvaindo-se.

- Mm...mal...dito anim... - proferiu suas últimas silabas caindo redondo para a frente.

Enquanto o corpo de Mok espasmava mais acima, um capitão Rombbod olhava incrédulo para a chacina espalhada colina abaixo. Estaria a sonhar? Afinal, o estúpido do humano era ainda  mais perigoso do que pensara, inventar um engenho desta natureza, quem iria imaginar? Sorte a dele ser inteligente, quando ouviu o primeiro grito horrível vindo da pequena força avançada algures acima ficara atento, algo corria mal, logo de seguida surgiu a "coisa" disparada do nevoeiro, maldito nevoeiro. Alertado, reagiu celere e atirara-se para baixo do cavalo fugindo ao terrível destino. O mesmo não aconteceu às suas tropas que por norma se mantinham dispersos em fila desorganizada atrás do chefe. Tinham sido poucos os que, apáticos, se safaram à ceifa. Alguns quedavam-se feridos no chão gemendo, morrendo, somente os mais atrasados tiveram tempo de reagir e riam-se como desgraçados dos camaradas moribundos. Ao capitão desta vez não lhe dava vontade de rir, a assunto estorna-se sério demais e nem os prazeres mais básicos o estimulavam. Convulsões nervosas assaltamvam-lhe o corpo todo e os olhos sob um semblante carregado reviraram-se fixando o nevoeiro colina acima.

O caso tornara-se pessoal.

-o-

O tempo urge, é de esperar que os monstros estejam agora mais furiosos que nunca. Foi um deleite ouvir aquele primeiro grito sobrenatural, grito de dor agonizante que eu provocara no primeiro demónio. Com um pouco de sorte terei apanhado mais quatro ou cinco, quem sabe? Um pouco de sorte. Morrei! Morrei como morreram os meus. Levarei para o inferno todos os que puder. A ideia surgiu-me naturalmente nem sabia bem como, tinha sido um desafio quase impossível domar o cavalo demónio, somente acalmou quando acidentalmente peguei no martelo de fogo, após alguns movimentos obedeceu-me cegamente, como que por temor. Ainda pensei fugir na besta, mas isso revelou-se inútil, o cavalo nem um passo deu e não tinha tempo a perder a perceber como o faria, era melhor seguir com o plano original. Mas esta arma tem realmente um poder e uma versatilidade espantosa, preciso ter isso em conta... ah, revigoro-me, apesar do cansaço que me invade, sinto que me revigoro cada vez que ouço um dos seus gritos em dor. Cansaço que não te vais, que não me largas, mas que agora teimo te combater. Mas é o espírito que me aflige, estilhaçado, necessito regá-lo com vingança. Um homem não foi feito para aguentar tanta amargura, tanta dor cravada no âmago. Mas preciso, é vital aguentar, por todos os meus e pela raça humana, matá-los-ei até não poder mais. E no ar sinto-lhes a fúria, a raiva. A caça continuará e só espero que o façam porque, pelos deuses, serão eles os caçados. Quem o diz é este homem, este que vós, criaturas do inferno, transformaram no vosso pior pesadelo!