Fikções, opinadelas e cenas que tais: Crónicas de coveiros: "1. Ganância"

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Crónicas de coveiros: "1. Ganância"

Raios! Era a 3ª vez essa noite que partia o cabo da pá. Já não se fazem como antigamente! Fui até à carrinha, substituí o malfadado e continuei, faltaria talvez um metro, mais coisa menos coisa. Com o suor abundantemente a afogar a camisa e a terra espalhada pelo cabelo e cara devia estar bonito, um verdadeiro bicho saído dum filme de terror. Enfim, isto não é trabalho para um tipo culto como eu, Francisco Diosteles Mateus.

Rai's partam a terra dura! Terra e mais terra. E depois a lama... a lama e a droga das pedras! Todas as noites de profanação dizia isto, e tantas noites já tinha passado assim. Agora claro, era diferente. Desde que o tio tinha desaparecido à 7 meses atrás que não mais me tinha dedicado a este tipo de "actividade". Sim, esta ia ser a derradeira noite a desenterrar um maldito caixão.

Tá quase, devo estar mesmo a bater com a pá no caixão. De esguelha vi um mocho curioso empoleirado numa das cruzes dos jazigos. Ah, parece que já sinto o cheiro da madeira húmida. Mais umas pazadas e de certeza que o familiar baque surgirá do fundo da cova.

Entretanto, descansar é preciso. Cavar um túmulo desta envergadura não é brincadeira nenhuma, ainda bem que ainda não perdi o jeito. Apoiado na maldita pá, aspirei umas lufadas de ar fresco e continuei."

"Op Op Op!" - Ritmava-me a mim mesmo em voz baixa. Era um vício adquirido nestes anos todos de escavações. - "Op Op!"

O meu tio e patrão, obrigava-me a fazer este tipo de trabalho todas as vezes que era enterrado no dia anterior um defunto com valores significativos. Eu, claro, protestava, mas não adiantava nada. O filho da mãe ameaçava-me logo com o despedimento imediato, sendo eu sobrinho ou não. Isso eu não queria, claro, também não sou nenhum estúpido. Afinal coveiros há muitos.
Só no último mês que se fez esses ataques à mais de meio ano atrás tinham sido mais de 20 escavadelas altamente lucrativas. A maior parte das vitimas eram velhas raquíticas da "haute societé", aquelas das quintas de familias ricas. Eh! As putas das velhas julgavam que iam usar as jóias no outro mundo para impressionar as almas penadas "jet set". Parvas! Tava mesmo a vêr o porco do tio a metê-las no cofre que escondia na agência e eu... eu com 50 míseros contos ao fim do mês. Em contrapartida o velho acumulara uma verdadeira fortuna nos últimos 40 anos.

"Ah! Ah! Idiotas!" - O pessoal da vila lançava palpites para o ar acerca do seu desaparecimento. O dele e o do famigerado cofre. Sabiam da sua fortuna porque o pobre diabo gabava-se de ser o homem mais rico das redondezas, contava e multiplicava-se em histórias de jóias e ouros herdados que guardava meticulosamente num recheado cofre. Claro que só eu sabia da verdadeira histórinha, era um caldinho muito bem confeccionado pelo velhadas. E para o Francisco? Sobrava alguma coisa? Calos! Nem desviar alguma coisa podia, o gajo tinha tudo em inventário post mortem, Raios o partam!

Bem, o merdoso do velho é que não me ia lixar mais a cabeça. Amanhã mesmo, dou a agência por falida e desapareço de cena. Sim, porque esta bosta de vida não é para mim, eu sou culto, inteligente, bem parecido, mereço uma vida folgada, de cavalheiro. Não é à toa que o pessoal da vila me apelida de "Xico Maneirão", só não gosto é quando a canalha me chama de "Xico Covão". Mas tá bem, de qualquer maneira os fedelhos malcheirosos não irão mais me pôr a vista em cima.

"Homp!"

Ah! Finalmente!
Agora é só retirar a terra que falta e será a última... e derradeira profanação! - AH! AH! AH!...

-o-

Os miúdos que se encontravam escondidos por trás da capela do cemitério tremeram quando ouviram as gargalhadas insanas do homem que se encontrava 30 metros mais abaixo. O mais pequeno, sardento e com ar matreiro desafiou o outro:

-Então agora é que queres ir embora? Agora que o maluco vai tirar o morto?

-Não! - disse o maior indeciso e ainda a tremer - a...agora vamos ficar.

Observaram então estupefactos o louco içar com cordas um caixão feito de madeira simples e corriqueira. Pousou-o ansioso no monte de terra que tinha extraído da cova, ficando a grande e mórbida caixa de esguelha mesmo virada na direcção dos dois pequenos. Uma mancha molhada tingiu e escorreu pelas calças do mais minorca.
O pé direito do homem enclinou-se para trás ganhando balanço.

-Filho da mãe! - Gritou, pontapeando o tampo com força. Com o impacto, este saltou e caiu para o lado. Ao mesmo tempo uma cabeça anteriormente decapitada foi cuspida e rolou até embater numa lápide. No topo do cranio estava bem exposta uma grande fenda que descia até aos orifícios onde em dias mais felizes se encontravam os olhos.

Perante visão tão aterradora, os miúdos fugiram soluçando e tropeçando até desaparecerem por entre as campas.

O homem, esse, parecia Lúcifer em pessoa. Deu uma última macabreante risada e baixou-se para erguer com enorme esforço um velho cofre, escondido no fundo do caixão.

23.09.97

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