Fikções, opinadelas e cenas que tais: agosto 2008

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Crónicas de coveiros: "5. Tempos que mudam"

"Conturbados e violentos tempos eram aqueles" - Lamentou Aristides.

Encostado a uma grande cruz de pedra fazia um pequeno intervalo descansando, a cerimónia fúnebre tinha acabado e tapava agora o resto da cova.

Folheava um jornal com arrogância, como se querendo vingar das sucessivas ondas de violência lidas de folha para folha. Já tinha visto de quase tudo. Virava uma folha, assassinos em série; outra folha, violações; outra ainda, pedofilia, assaltos, seguindo-se esquartejamentos de aldeias inteiras em países de terceiro mundo. Aquilo tudo enojava-o, dava-lhe náuseas. De vez em quando tinha mesmo de desviar o olhar das fotografias aberrantes que dançavam como demónios nas folhas do jornal.

Nada que não estivesse habituado a ver todos os dias claro. Uma pessoa ficava de dia para dia cada vez mais insensível a este tipo de noticias, mais frio, tinha-se tornado tão vulgar como sair da cama, tomar um duche e lavar os dentes.

Mas hoje havia algo que lhe chamara especialmente a atenção ao ler os títulos. Algo que lhe dera um arrepio frio na espinha e lhe tocara mais no seu intimo. Virou finalmente a página cinco e lá estava, em letras gordas: «LOUCURA NO CEMITÉRIO - Vaga de mortes, crimes e aberrações assolam vários cemitérios do país.»

"Porra, nunca tinha ouvido tal coisa antes" - exclamou. - "Raios".

Uma página inteira dedicada a quatro casos no mínimo escabrosos. Mas onde iria isto parar? Agora até nos cemitérios? De loucos!

Todos tinham como foco de noticia os coveiros dos respectivos cemitérios. Situações de província, ao menos isso, todos tinham acontecido em lugares remotos longe do seu cemitério na grande cidade, vá lá, não fosse a moda pegar.

A primeira situação dizia respeito a um assassínio por avareza de um tio pelo sobrinho. Por um lado Aristides até entendia o móbil do crime, nos dias que correm é raro encontrar um coveiro ganhar algo de minimamente razoável. Neste caso, o tio, dono da agência funerária local, aproveitara-se do trabalho árduo do sobrinho pagando-lhe uma ninharia enquanto fazia fortuna com a profanação posterior de túmulos recentemente sepultados. Lógico que isso não justificava a situação, afinal, assassínio é assassínio. O raio do homem tinha rachado de alto a baixo a cabeça do tio com uma pá, logo seguido de decapitação por puro prazer, por vingança de anos acumulando ódio. Enterrando-o escondeu um enorme cofre com os lucros profanatórios armazenados ao longo de anos a fio. O plano até que fora bem executado, o tio tinha sido dado como desaparecido e o coveiro com o pesar nos olhos lá fizera o sacrifício de ficar com a gerência da funerária. A policia até que desconfiara um pouco mas sabe-se como é, nestas terriolas a acção da policia é de deixar passar a banda, não estão para ter trabalho com esse tipo de investigações. O azar batera-lhe à porta seis meses depois aquando do desenterro do recheado cofre, duas crianças testemunhas e assustadas alertaram um policia que passava por acaso perto. O raio do coveiro ia ser internado num hospício para o resto da vida. Bem feito.

A segunda noticia era um caso crónico de canibalismo, horrendo.

- Canibalismo?! - Revoltou-se fazendo uma careta. - C'um caraças, canibalismo num cemitério. Comer pessoas já é doentio, agora comê-las já enterradas e em decomposição? Inconcebível!

Ainda mais mal disposto ficou com o desenvolvimento do texto. O tipo tinha feito aquilo umas quarenta e tal vezes. Esperava por altas horas da madrugada, desenterrava as vitimas, desmembrava-as e desatava a fazer um verdadeiro festim em churrasco. Que loucura, insanidade ou obra do demónio levaria uma homem fazer algo como isto? Quarenta piqueniques sem ninguém dar por ela, até o anormal ter adormecido empanturrado e acordado com a catana que usava espetada entre as costelas, a barriga esventrada com a pá. Apanhado pela esposa da defunta refeição morrera como um porco morre na matança. Bem feito novamente.

Engoliu em seco. Fez uma pausa, custava-lhe continuar a ler aquelas aberrações.

Começou a ler a próxima: um outro coveiro tinha sido encontrado feito em pedaços pelo que parecia ter sido um ataque de ratazanas. Os investigadores não tinham chegado a uma conclusão que fosse, porque raio os roedores agiram de tal forma, se é que tinham sido mesmo roedores, as únicas provas eram as dentadas no que restava dos restos do pobre homem e as incontáveis marcas das patas dos animais espalhadas por todo o cemitério. Uma coisa era certa, pelo número das marcas, poderiam ter sido milhares de animais. Convergiam todas elas da capela encontrada de portas abertas. O curioso é que o único rato que descobriram no local era um que se encontrara morto cortado a meio, entre duas lápides caidas. aparentemente o coveiro era de uma competência febril e tinha horror a qualquer tipo de imundisse. A sêr verdade vá-se lá sequer imaginar o pesadelo do pobre coitado. Havia uma testemunha, o ajudante, infelizmente o rapazito era desequilibrado e não dizia coisa com coisa. Só repetia continuamente algo sobre ratos bonitos e amigos, como gostava deles, totalmente aéreo, deve ter ficado assim com o choque.

A última noticia era a mais intrigante de todas. O coveiro desse cemitério tinha desaparecido por completo. Era um tal de Joseph Tutu Basille, 47 anos, 1 metro e 95, negro emigrante das Antilhas francesas. Ninguém o conhecia muito bem nem mesmo como ali chegara. Bem, parecia simplesmente que um terramoto passara no cemitério. A terra dos túmulos tinha sido elevada e revolvida por alguma força que não se compreendia como ou o quê o teria feito, uns falavam de uma escavadora talvez, mas não havia quaisquer marcas no local, era realmente estranho. A fotografia do jornal mostrava blocos completos de terra meios metidos nas covas meios de fora, outros totalmente de fora, quebrados em blocos mais pequenos. Campas e lajes de marmore desfeitas em cacos, parecia algo saído da mente de Dante, ao quadrado. A policia estudara o caso mas acabava sempre em becos sem saída. Fora encontrado um rapazito inconsciente no local, Cristóvã... não, Crisóstomo qualquer coisa, as letras no jornal encontravam-se esborratadas. O rapaz não se lembrava de nada e respondia sempre a sorrir como se tivesse acabado de receber um presente pelo natal. Mais estranho ainda era que o resto do povo da pequena vila comportava-se da mesma maneira, felizes como tudo, e esses nem tinham assistido ao que acontecera. Via-se na fotografia algumas pessoas sorrindo a um canto, algo surreal que não encaixava naquela paisagem completamente virada do avesso. Seria de esperar umas feições pesadas, espantadas ao menos, com lamento esculpido nelas perante algo tão profanatório e sem sentido, não? Não. Paz, em sua plenura. O desenrolar da noticia acabava numa série de teorias de como o coveiro teria desaparecido. Nenhuma delas sem algum sentido.

Aristides soltou um suspiro. O mundo ficava cada vez mais louco e essa loucura chegava agora até ao seu mundo.

- Onde vamos nós parar?! Onde? - questionou em voz alta, abanando a cabeça.

No fundo da página vinha um texto de análise com opiniões de dois peritos na área da psicologia e um qualquer representante religioso. Os psicólogos desdobravam-se em tentativas de explicações de comportamentos extremos e tresloucados dos sujeitos da primeira e segunda noticia, sem muito sucesso. O teólogo arranhava as histórias em conjunto culpando os média e o sensacionalismo de toda aquela parafernália, não tocando sequer no assunto própriamente dito.

-Bah! Não dizem nada de jeito. Só fazem é pior! - Culpou-os.

Pôs-se a questionar se aquilo tudo não seria um mero acaso. Sim, porque não? Durante anos que não acontecera nada deste tipo em sítios sagrados como cemitérios, pelo menos que ele soubesse.
Seriam os sinais dos tempos? Bem, também não interessa, o que importava é que ler noticias de violações ou assassínios já era frustrante, agora este tipo de violência nos cemitérios deixava-o numa tristeza e numa amargura... manchava o bom nome da profissão. Bem, tinha é deitar isso tudo para trás das costas e continuar a vida dele. Ainda tinha muita terra para cobrir a cova.

Dobrou o jornal em dois e pousou-o em cima duma campa. Pegou na pá e na M-16 que jazia ao seu lado. Verificou a arma que anteriormente tinha encravado, já não as faziam como antigamente, pousou-a em cima do jornal. Olhou em redor para o monte de corpos trespassados vezes sem conta e espalhados em redor da cova. Todos vestidos de luto agora manchado por nódoas vermelhas espessas.
Procurava aquele que sobrevivera por causa da M-16 encravada. A última bala tinha-se alojado no abdomen e o homem gemia arrastando-se lentamente, tentando fugir. Chegou perto dele por trás e empunhando a pá desferiu um golpe certeiro no crânio matando-o instantaneamente. Voltou-se arrastando o corpo por um braço.

Suspirou.

Sim, ainda tinha muito trabalho pela frente.

05.12.97

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Crónicas de coveiros: "4. Makievum Makievaas"

Deitado num galho de oliveira, Crisóstomo observava atentamente o desenrolar do funeral a uns seguros cinquenta metros de distância. Agarrava-se à árvore como um gato, deixando transparecer que não era a primeira vez que o fazia.

O rapaz travesso e curioso não era pelo funeral que ali estava matreiramente a espiar, mas sim pelo que iria acontecer a seguir.

Era um final de tarde cinzentão de Outono e as folhas do diverso arvoredo circunscrito ao cemitério amontoavam-se em padrões aleatorios pelo chão. O frio não era muito, mas a brisa atirava a folhagem da farta oliveira constantemente para a frente do ângulo de visão do rapaz. Ele, resmungando consigo mesmo, lá ia fazendo os possíveis por desocupar as vistas.

Crisóstomo não era um miúdo como os demais. Soprara 15 velas no seu último aniversário e na escola ia um ano à frente dos da sua idade. Enquanto os outros colegas preferiam passar o tempo a jogar e a brincar, ele era mais de um género recatado e fechado, cultivava no entanto uma curiosidade incansável, inata, intrigava-se com tudo o que de misterioso fosse ao redor de seu mundo. Aliás, até já tinha dito aos pais que "quando fosse para faculdade gostaria de ser cientista ou investigador para estudar isto e aquilo, coisas que os pobres pais ignoravam existir". Mas eles claro, como ainda era muito novo não faziam muito caso. Porém, achavam estranho ele não brincar com os demais e já tinham começado a achar anormal o seu comportamento como por exemplo o facto de Crisóstomo se dirigir todos os dias ao cemitério fazer sabia-se lá o quê. Enfim, os pais impotentes, encolhiam os ombros.

A cerimónia finalizara. As pessoas pesarosas lá se foram melancolicamente dispersando, indo cada uma à sua vida. Esticou-se ainda mais no galho e arregalou totalmente os olhos, e lá estava ele, o objecto do seu fascínio, o coveiro.

Personagem estranha e solitária, nunca falava com alguém exceptuando quando respondia uns esporádicos sim ou não numa pronúncia francesa enrolada. Era uma das coisas que maravilhavam Crisóstomo, via naquele homem enorme de quase dois metros com vestes sempre negras e pele excessivamente pálida um verdadeiro poço de mistérios, atiçando ainda mais o seu fogo de curiosidade. No entanto, era a maneira como o coveiro acabava os seus trabalhos que ainda mais confusão lhe toldava o cérebro.

Todas as vezes que tapava uma cova e se encontrava sozinho no cemitério já de noite, assistia-se a um ritual que só o furtivo Crisóstomo e o próprio coveiro conheciam. O homem punha de lado a pá, dirigia-se ao seu carro e trazia nos braços uma série de frascos
fumados, um livro velho e grosso e ainda meia dúzia de pequenos sacos, era pelo menos o que ele julgava discernir àquela distância. Os procedimentos que se seguiam também não os identificava com nada que tivesse visto até à data, mas concerteza eram de natureza obscura, no mínimo.

Ajoelhado no chão e em frente à cova recém coberta, o ténebre homem abriu o livro e colocou-o a seu lado. Começou por trocar o conteúdo dos frascos uns atrás dos outros. Intervalando, abria os braços, lia umas linhas do livro, olhava para cima e bradava algo numa qualquer língua estranha, que, como tudo o resto, desconhecia:

- Makievum Makievaas! Makievum Makievaas! - Fazia ecoar as palavras por todo o cemitério.
Finalizava a reza regando a terra com as misturas feitas anteriormente. Seguidamente, tirava dos sacos certos objectos e espalhava-os pela terra mole de forma, e isso conseguia vêr perfeitamente, a desenhar uma cruz. Mas uma cruz ao contrário.

Claro que, como exímio explorador, Crisóstomo já tinha investigado o significado daquele sinal e das palavras proferidas. Na biblioteca da vila tinha gasto horas e horas procurando algo que fizesse alusão àquela invulgar disposição da cruz. Revistou enciclopédias sobre a idade média e volumes sobre feitiçarias demoníacas, tinha sido difícil mas a procura dera os seus frutos. Num antigo livro sobre práticas ocultas descobrira o seu real significado: era o símbolo do anti-cristo. Quanto às palavras, não encontrara nada que lhes fizesse alusão.

Mas afinal o que se passava ali? Tinha de descobrir de alguma forma, disso tinha ele a certeza, pois de contrário dava em maluco.

Já há muitos enterros que esperava sem qualquer sorte uma oportunidade para verificar mais de perto aqueles objectos misteriosos. Era um rapaz com muita paciência, no entanto esta espera tão longa deixava-o numa ansiedade de roer as unhas.

Tentara arranjar uns binóculos sem sucesso, dos poucos que conhecia nenhum tinha e nem dinheiro para comprar uns conseguira obter, além do mais, de noite não veria nada. Cansado de esperar pela sorte, tinha de forjar uma outra maneira
qualquer. Depois de vários esquemas e planos deduziu que seria mais eficaz pôr em acção um que não fosse muito complicado.

O carro do homem. Sim, seria essa a diversão.

Desceu a árvore e saltou o muro na parte mais distante em relação à posição do coveiro. Dirigiu-se ao automóvel estacionado perto do enorme portão de entrada do cemitério iluminado por dois grandes lampiões, um de cada lado.

Estudou melhor o seu plano. Sim, seria fácil. O coveiro nunca deixava o carro trancado, assim, Crisóstomo agachado abriu com cuidado a porta do lado do condutor, baixou o travão de mão e fugiu o mais rápido que pôde. Como a rua do cemitério era um pouco inclinada logo o veiculo se começou a mover.

Correu tudo como planeara. Escondido atrás duma oliveira, Crisóstomo ouviu o carro que, embalado, embateu com força e estrondo no muro do fundo da rua. O barulho fez atrair a atenção do coveiro interrompendo-lhe o ritual. Levantou-se e reparou através do gradeamento do portão a ausência do seu automóvel. Praguejou qualquer coisa relacionado com travões e dirigiu-se para saída em passo apressado. Ao passar o portão parou sobre a forte iluminação dos lampiões, lançou um olhar desconfiado para os seus pertences espalhados lá atrás no chão. Perscrutou depois o cemitério inteiro, lentamente, hesitou o olhar por escassos momentos na direcção da oliveira como que pressentindo algo. Franziu o sobrolho e partiu em socorro da viatura.

O rapaz suava em gotas geladas, branco como cal, encolhera-se o mais que pôde atrás do tronco da árvore - "meu Deus" - pensou. - "Ele olhou para aqui, mas não pode ser, como poderia vêr através do tronco e no escuro? Não pode! Devo estar a imaginar coisas." - verificando que o coveiro desaparecera atrás de alguns cedros e do muro alto do cemiterio, correu na direcção da zona do ritual.

"Engraçado" - pensou parando a meio do caminho. - "Parece que ainda estou a ouvir aquelas palavras a gritar." - não ligou e continuou.

Conforme se ia aproximando, as palavras proferidas anteriormente pelo homem negro ecoavam cada vez mais alto na sua cabeça, só que desta vez totalmente distorcidas. Achou estranho mas continuou a caminhada. Sentia o próprio ar mais denso e pesado, custava-lhe respirar.

Petrificado será a palavra certa para descrever como Crisóstomo reagiu ao vislumbrar os objectos da estranha cerimónia. Espalhado pela terra solta da cova, via-se uma multitude de insectos mortos. Baratas, vermes, moscardos, centopeias e outros que não conseguia identificar. Veio-lhe uma vontade súbita de vomitar, controlou-se. Reparou então na cruz invertida e o seu estômago mais revoltado ficou. Era composta e desenhada por cabeças de aves e pequenos gatos mortos, à volta, tigelas do que parecia ser mercúrio puro adornava o conjunto.

- Meu Deus! - Exclamou tentando segurar um vómito. - "Voodoo! Ritual voodoo, só pode ser!" - Pensou horrificado.

As vozes martelavam fortemente dentro da sua cabeça. Sacudiu-a aflito. Não paravam. Sentia-se entorpecido, dominado por uma força que não conseguia vêr.

Foi então que reparou incrédulo no livro ainda aberto. O maldito pulsava e ondulava as suas páginas como se estivessem vivas. Palavras irreconhecíveis apareciam e desapareciam em redemoinhos. Conseguiu ler em letras maiores o já familiar: "Makievum Makievaas". As letras pareciam olhar para ele invadindo-lhe a alma.

Foi a gota de água. Crisóstomo não aguentou mais e fugiu com todas as forças que tinha, tropeçando pelo caminho em tudo o que lhe aparecia à frente.

Já na sua árvore de refúgio, tentou-se acalmar. Os ecos tinham desaparecido assim como o ar pesado.

"Voodoo. Voodoo esquisito, mas definitivamente voodoo." - Repetiu mentalmente. - Mas o que quererá ele fazer com isso?

Crisóstomo sabia perfeitamente que se tratava deste tipo de magia negra por já o ter estudado anteriormente. No entanto, era diferente de todos os outros rituais que tinha lido nos velhos livros ou vislumbrado na tv. Uma coisa era certa, tinha algo a vêr com o maldito livro e o que nele estava escrito. Quando se aproximara da cova aquelas palavras não paravam de soar na sua cabeça. Parecia que uma multitude de almas moribundas se uniam a gritar em uníssono aquelas palavras maléficas. O estranho é que parecia ser um grito de clemência, uma clemência que nunca mais chegava. Palavras maléficas mas num grito de escravidão.

Subitamente foi assaltado por um sentimento de angústia, de pena. Não sabia porquê. Depois sentiu um arrepio. Olhou para o portão, o coveiro voltara.

O homem negro atravessou a entrada soltando uns grunhidos, talvez maldizendo a sua sorte. Aproximou-se a passos largos e pesados, estancou junto à cova. Ficou ali parado em transe, olhar fixado no chão, quase de costas para onde Crisóstomo estava. O rapaz observava do seu ramo numa tensão agravada pela situação anterior. Ainda suando com o coração descontrolado.

De repente, o coveiro voltou a cabeça na sua exacta direcção. Crisóstomo ficou petrificado, interrompeu a respiração num gesto reflexo, não queria acreditar. O homem negro olhando na sua direcção com os olhos enormes revirados em branco desenhava um sorriso ainda mais branco e diabólico, de proporções anormais. Parecia que alguém ou algo lhe segredara o que acontecera na sua ausência e lhe dissera onde ele estava.

- Céus! Estou perdido! - Rogou baixinho.

As palavras malditas recomeçaram a ecoar na sua cabeça, cada grito mais forte que o anterior. Tapou os ouvidos, não resultou. Enlouquecia. O coveiro continuava na mesma posição, agora acompanhando as palavras que surgiam do nada com a própria boca, murmurando.

- Makievum Makievaas! Makievum Makievaas! - Aumentava progressivamente a tom de voz. - Makievum Makievaas!

Com a cabeça latejando, Crisóstomo desceu a árvore quase caindo. As palavras do coveiro, poderosas, abafavam já os ecos na sua cabeça.

- Makievum Makievaas! - Proferia freneticamente com a boca.

Começou-lhe a sair sangue pelo nariz. Tentou gritar por socorro mas as palavras saíam-lhe abafadas, inaudíveis. Entrou em pânico. Mas não podia, tinha de se acalmar, concentrou-se. Só assim teria alguma hipótese. Não conseguia se mover.

- Makievum Makievaas! - Continuava o coveiro. Parou. Gargalhou de forma rouca.

Olhando-o fixamente, começou a falar em tom baixo e continuamente em francês. Versos enrolados eram vomitados rapidamente sem parar. Crisóstomo, mesmo sendo bom aluno a francês não conseguia acompanhá-lo. Tirava uma palavra aqui e ali mas não conseguia perceber nada. Finalmente rematou:
- "Makievum Makievaas!!!" - e parou. Num gesto seco olhou para o céu de carvão.

- À tous âmes damnée! À tous âmes en peine! Je vous commande! - Baixou os olhos para Crisóstomo - tu vas mourir!!!

Crisóstomo sentiu o pânico invadir-lhe novamente todos os poros do corpo. O coveiro ia assassina-lo. Chamava por almas condenadas e em sofrimento. Ia morrer e irónicamente estava no sitio certo para isso, lembrou-se. Nunca ninguém iria encontrá-lo - "Iria enterra-lo vivo?!" - pensou.

- Makievum Makievaas! - Gritou o homem negro ainda mais grotescamente. Levantou os braços.

O rapaz viu então horrificado todas as campas do cemitério se erguendo em espasmos. Blocos inteiros de terra subindo e subindo parando a três ou quatro metros do chão.

- À tous âmes damnée! - Repetiu - À tous âmes en peine!

De cada cova aberta saíram nuvens escuras pairando e gemendo sob os blocos de terra levantados. Revolviam-se e rodavam num tremor inimaginável. Coagulavam pulsando em corpos inexistentes. Todas elas emitindo as mesmas palavras guturais do coveiro mas numa frequência de som a lembrar o infinito. O homem entrara novamente em estado de transe, levitando entre elas na mesma posição em que ficara, com os olhos revirados.

As nuvens de trevas iniciaram uma rota de colisão com o rapaz, aproximando-se lentamente, sempre gemendo, animalescamente.

- Calma Crisóstomo, calma! - Murmurou. - Mantém a calma e pensa, pensa, não pares de pensar. - Tinha de fazer algo ou então ia sucumbir a um horror impensável. Nem queria sequer imaginar qual seria a sensação do toque daquelas massas etéreas horrendas.

Acalmar-se era vital, a chave da sua salvação, mesmo com a cabeça quase a rebentar invadida por pensamentos impossíveis e palavras loucas. Tinha de haver algo que o pudesse libertar, algum ponto fraco no ritual do coveiro - "algo, algo! Crisóstomo! Pensa!!!." - Segundo o que tinha lido, havia sempre um contra-procedimento que anulasse os efeitos da magia negra, qualquer que fosse o tipo ou origem.
E as nuvens ficavam agora perigosamente perto, rodeando-o de todos os angulos formando uma só massa turbilhante. Tinha forçosamente de haver uma maneira, começou a associar o que tinha aprendido. Com uma concentração só dele, Crisóstomo lembrou-se quando se tinha aproximado da cova e visto os objectos pela primeira vez. Pelo sotaque francês, o coveiro mostrara que se tratava de uma magia negra originária de alguma ilha remota das Caraíbas, mas não via por onde isso o poderia ajudar. A não ser, claro está, que tinha de responder na mesma linguagem imposta, isto é, francês. Passou para a cruz invertida: somente significava que o bruxo coveiro renunciava a qualquer Deus que fosse e desejava o domínio do demo, o instrumento usado para isso eram as almas que acabavam de ser enterradas e eram convertidas para servir o demónio. Depois todos os pormenores que se lembrava: o som ecoante, o coveiro comandando as almas penadas, as palavras repetidas continuamente no livro, Makievum Makievaas, Makievum Makievaas...

"Mas claro! Só podia ser isso!" - Pensou ele já com uma mancha negra em fúria a tapar-lhe todo o campo de visão.

Lembrou-se dos gritos agonizantes daquelas almas sempre repetindo as palavras do livro. As pobres não eram convertidas ao estado maléfico como tinha pensado mas presas contra-vontade e mantidas em escravidão como servas. Cada uma na sua campa numa verdadeira masmorra demoníaca, para posteriormente serem controladas.

Tinha de agir rápido pois começava a sentir-se fraco. Parecia que as almas lhe sugavam a sua essência de vida. Escolheu as melhores palavras que sabia e reuniu todas as forças que pôde, a resposta tinha de estar no que acreditava.

- Dieu veuille avoir sons âmes! - tentou gritar, a medo, aclamando a Deus que viesse libertar as suas almas.
Nada aconteceu.

- Dieu veuille avoir sons âmes!!! - Repetiu mais forte mas sentindo as forças a esvairem-se.

Nada. Desesperado, repetiu novamente para si próprio - "Dieu veuille avoir... sons..." Sentia-se desfalecer, estava perdido.

Foi então que aconteceu, sem aviso. O som e as palavras cessaram. O turbilhão na cabeça do rapaz também. A nuvem pérfida formou-se numa fina névoa branca, pairando suavemente à volta dele tocando-o levemente. Todos os blocos de terra que flutuavam no ar caíram um por um em estrondos abafados. O silêncio imperou.

À sua frente, o coveiro levitava agora deitado desfalecido, os braços caídos, rodando sobre si próprio. A neblina juntou-se à sua volta formando um casulo de luz suave. O coveiro desapareceu lentamente dando lugar a uma nuvem negra, ainda mais negra e violenta do que as outras. Subiu em espiral e foi engolida pela noite num horripilante gemido. Baixou a cabeça e viu a nuvem alva desvanecer-se, lentamente.

E então Crisóstomo sentiu-se envolvido por uma paz incrível, que nunca pensara existir. - Tinha sido tocado por anjos! - Perdeu as forças e desmaiou.

-o-

Acordou rodeado por um tumulto de pessoas chamando-o e com a mãe tentando reanima-lo. Sentou-se e sorriu, lembrou-se que vencera o bruxo demónio.

As pessoas interrogavam-se sobre o que tinha provocado aquela confusão endiabrada no cemitério. Campas semiabertas, imensos blocos de terra encavilhados diagonalmente nas covas e espalhados pelo chão, o rapaz no meio daquela algazarra toda a sorrir sem razão aparente. No entanto e sem perceberem muito bem porquê, sentiram todos uma paz imensa inundar-lhes a alma. Era engraçado, não entendiam mas pressentiam que também não precisavam compreender. Deixaram de fazer perguntas e dirigiram-se todos para as suas casas, todos com um leve sorriso desenhado na cara, como Crisóstomo.

26.11.97

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Crónicas de coveiros: "3. O exterminador"

- Reco! Ó Reco! Como é? - Reclamou Tortúlio.- Como é murcão? Daqui a nada faz-se noite e nós aqui, a amanhá-las! Julgas q’eu tou aqui pra te aturar ou quê?! Força no lombo rapaz, ainda falta um metro de terra pra’ scavar!


E Reco Lopes lá vinha carregado com as pás e outras ferramentas. Tinham começado a cavar a cova logo após o almoço, entretanto, interromperam os trabalhos devido a uma cerimónia ao meio da tarde e Reco, coitado, era o burro de carga do material. Tremia só de olhar ou ouvir o seu tutor.


Tropeçou numa campa e espalhou tudo pelo chão.


- Idiota! Desastre! É o que és! Sempre a mesma coisa, não sei como te foram buscar à casa da tua mãezinha para trabalhar comigo aqui nas lides, estavas bem era a mamar ainda na teta dela! Apanha lá essa tralha, vamos!


Tortúlio continuava constantemente a fustigar a cabeça do rapaz. Já não bastava a vida de merda que tinha, não, tinham de lhe arranjar um atrasado mental como ajudante. Sabia muito bem porque o tinham feito, a sua mísera reforma entraria em vigor dali a 4 curtos meses, logo, era urgente encontrar um substituto: Reco Lopes claro. Veio mesmo a calhar para os padrecos. O coitado do infeliz era um bocado lento, tanto de cabeça como de reflexos, já tinha nascido assim. Ia na casa dos 16, um rapagão crescido, feito, de cabelos aos caracóis e feições a fugir para um menino de 8. Se não fosse ele a tentar pô-lo a mexer, ninguém o faria. Infelizmente, dia para dia lhe dava a sensação que essa missão era cada vez mais impossível.


Reco atrapalhado apanhou as ferramentas e continuou a marcha.


- Pronto S’Túlio, tá... tá aqui tudo - disse arfando numa voz esfarrapada.


- Bolas rapaz, já não vamos acabar esta porra a tempo! E a pá? Onde está a outra pá? - Exigiu Tortúlio virando a cabeça para onde Lopes tinha caído. - Ali! Vai lá buscá-la! - Disse apontando para um cabo emergindo por trás de uma lápide.


"Caramba!" - Pensou Reco Lopes. - "Também, o S’Túlio podia ser menos mau para mim. Qualquer coisa que eu faça pronto, tá logo a berrar comigo".


O Senhor Tortúlio Menezes era um coveiro exímio e competente, gostava fundamentalmente de manter tudo no sítio e limpinho, paranóia desenvolvida ao longo destes anos todos escavando e enterrando defuntos. Qualquer lixo, qualquer tufo de erva mais crescido, era logo um alarme geral no cemitério, originando verdadeiras rusgas a todos os cantos e campas. Era um homem de coração azedo e um olhar sempre zangado, via a vida como uma constante luta. Baixo, gordo e sempre de óculos na ponta do nariz, amaldiçoava tudo e todos, principalmente este idiota desmamado que lhe tinham "dispensado", para não utilizar outra palavra mais contundente, claro.


- Porca de vida! - Indagou. - Vá, despacha-te rapaz!


Reco correu para o local indicado por Tortúlio e agachou-se para apanhar a afamada pá.
"Despachar, despachar, sempre a correr. Rai’s partam o S’Túlio" - pensou queixando-se. - "Mas... que é isto?" - Indagou olhando para um fina cauda rabiando de baixo da colher da pá. - "Um rato? Só pode ser... deixa vêr" - levantou-a cuidadosamente e lá estava um ratito assustado, olhando para Reco tremendo e gemendo.


- Então? Essa pá vem ou não vem ó palerma? - Berrou Tortúlio. - E pra onde tás tu olhar?


- Não é nada S’Túlio, já lá vou, - disse disfarçando. Se o mestre visse o ratito era um descalabro total - "Coitadinho, tá ferido, o peso da pá foi demais para o pobre bicho." - Que iria fazer?


- Já vais, já vais! Já vais é levar um cachaço por não te despachares! - Ameaçou o mestre a aproximar-se em passos curtos e rápidos, - o quê?!?! - Exclamou vendo o pobre animaleco. - Mas que raio é isso? - Um rato? No meu cemitério? Impossível! Mata-o! Pisa-o! - Lopes nem se moveu, petrificado.


O roedor, em pânico, esforçou-se a correr dentro do que lhe era possível, meio a coxear, meio aos tropeções. Tortúlio atrás dele com a pá em riste disferia golpes atrás de golpes tentando acertar no diabo do rato que, mesmo ferido, lhe fugia com habilidade só igualada por outro roedor mais saudável.


- Palerma! Deixaste-o fugir, seu burro! - Gritou ele. - Deixa-me só acabar com este diabo imundo que já te trato da saúde!


Lápides caiam, flores voavam, vasos quebravam-se, Tortúlio saltando de campa em campa, pontapeando, derrubando tudo o que lhe aparecia à frente, enlouquecia cada vez que falhava um dos rudes golpes.


- Ratos é que não! Ratos é que não! Tudo menos ratos! - Berrava.


Tinha nojo a ratos e a tudo pequeno que se mexesse. E logo no seu cemitério? Isso é que não.
Reco Lopes assistia aterrorizado à cena caricata que se desenrolava à sua frente. Afinal, o ratito não tinha feito nada de mal. O único pecado cometido tinha sido o infortúnio de se estatelar debaixo da colher da pá.


Pouca sorte das poucas sortes, enfiara-se num beco sem saída entre as paredes de dois túmulos. Nenhum buraquito, nenhuma brecha onde se meter. O coitado encolheu-se todo, chiando, esperando imóvel pelo violento destino que o humano lhe tinha reservado.


- Ah! Imundo bicho! Fizeste-me destruir meio cemitério, mas agora não escapas! - Dito isto, o velho mediu distâncias e arremessou a pá em flecha na direcção do minúsculo rato. Resultado: cabeça para um lado corpo para outro. - Toma! Já não voltas a chatear mais - ironizava ele enquanto que se agachava para apanhar o instrumento. Limpou-lhe o sangue a um tufo de ervas.


Reco desistiu de torcer pela sorte do pobre ratito, sentou-se no chão, frustrado. Uma lágrima
cintilou percorrendo-lhe a face.


- Ó Reco! Palerma! Tu sentas-te? - Gritou o homem mais velho aproximando-se do rapaz. Deu-lhe um monumental cachaço fazendo-o rebolar pela terra fora, continuou: - só te sentas quando eu mandar! Vamos lá marreco! Toca a limpar esta gueira toda, hoje vais fazer horas extras!


Reco Lopes levantou-se com as lágrimas agora a jorrarem em catadupa e os olhos inchados, começou por recolher a enorme quantidade de flores que jaziam lavradas por todo o cemitério.


Entrementes, a noite caíra sobre o horizonte. Instalou-se a penumbra que logo foi cortada por
golpes de lampiões plantados aleatoriamente pelo cemitério. Tornara-se mais difícil a apanha e a limpeza, além disso, o rapaz tinha de ter cuidado para não cair na cova meia escavada.
Duas rosas, um gladíolo desfeito, três jarros que já nem jarros eram, Reco infeliz catava a imensidão colorida enquanto Tortúlio se distraía limando a lâmina da pá assassina, amaldiçoando o maldito bicho que na perseguição lhe fizera abrir várias fendas no precioso instrumento. O rapaz lá continuava a tarefa: mais quatro restos de túlipas; um ramo de violetas; um cravo; dois... dois pares de olhos? Não, três pares de olhos vermelhos de fogo emergindo da sombra de uma lápide. Mais ratos? Só podia ser. Os olhitos miravam directamente na direcção de Reco, que tremendo, ainda lhes sorriu em resposta e exclamou inocentemente sem pensar. - Mais ratitos!!!


- Quê?!?! - Gritou o velho girando na direcção de Reco, que acabava de se arrepender por ter denunciado os pobres ratos. - Mais quê?!?!


- Imediatamente reparou nos pequenos olhos que em vez de observarem Reco olhavam agora para ele.


Furioso, ergueu a pá colericamente com ambas as mãos e embrenhou-se em nova campanha exterminadora. Rogava as piores pragas que Reco alguma vez ouvira. Os três ratos fugiam e surgiam da escuridão, quase gozando com ele, desnorteando-o. A fúria mordendo-o cada vez mais. Lápides já caídas eram agora estilhaçadas, as flores pisadas e cacos chutados em todas as direcções.


- Ó palerma! - Disse frustrado. - Ajuda-me a acabar com estas pestes! Não fiques aí especado!


Reco uma vez mais olhava incrédulo para a cena demente que se desenvolvia à sua frente. Não aguentava mais vêr aquela loucura. Sentou-se desanimado num vaso virado do avesso, cabeça entre os joelhos e as mãos pressionando fortemente ambos os ouvidos. Não queria ver nem ouvir esta insanidade, nem pensar nela sequer. Começou a contar em voz baixa.


- Um, dois, três, quatro, cinco, seis... - ouvindo ainda os sons e gritos produzidos pelo louco tutor, continuou a contar mais alto tentando abafar o que não queria ouvir.


- Idiota! Puto da merda! Que tens tu? - Perguntou Tortúlio amarrado a uma cruz tentando pisar um dos ratos com um pé e acertar com a pá noutro. - Anda-me ajudar! Sozinho não dou conta destas pestes todas meu estúpido! - Enquanto gritava o animaleco restante mordia-o pendurado no traseiro. - Ahhh! Maldito!


Os três ratos juntaram-se e como que combinado correram lado a lado reunindo-se no corredor central do cemitério. Tortúlio Menezes olhava incrédulo para o grupo de roedores parecendo conspirar olhando para ele. Mais louco que nunca, desatou a berrar fazendo ecoar a sua voz estridente por todo o cemitério. Reco sobressaltou-se com os gritos guturais e, tremelicando com o corpo todo, começou a contar ainda mais alto: - ...quarenta e dois! Quarenta e três!


Tortúlio recomeçou a correr e parou a meros três metros dos pequenos roedores. Pá em riste, pronta para desferir um golpe que acabasse com os três de uma vez.


- Aí... Quietos... - sussurou. - Quietinhos e juntinhos... - os ratos como que obedecendo mantinham-se juntos, parados a olhar para ele.


Deu um passo. Os ratos recuaram um pouco. Deu outro passo. Recuaram sempre a olhar para Tortúlio. Outro. Recuaram.


"Raios partam os bichos" - disparatou para ele mesmo. - "Parece que adivinham o que lhes quero fazer".


Deu mais dois passos e os ratos recuaram uma vez mais. No acto reparou que acabava o corredor principal do cemitério terminando nas portas da capela.


"Eh! Eh!" - Sorriu para dentro - "Mais um pouco e apanho-vos lá dentro, fecho as portas, acendo a luz e acabo com todos à vontade. Ah!!! Não têm hipótese nenhuma.


Pensado isto, os três minorcas bichos penetraram na escuridão da porta da capela todos de uma vez. Tortúlio nem acreditando na sorte da oportunidade, embrenhou-se também na escuridão total.


Não contando com o pequeno declive do degrau da entrada, tropeçou e caiu como um saco de batatas na madeira antiga do soalho.


- Ah! Maldição! - Insinuou esfregando um nariz que, não fosse a escuridão, o veria vermelho como um tomate maduro.


Ainda deitado no chão de barriga e praguejando, lembrou-se dos ratos. Não poderia perder tempo, apre fechar as portas! Começou por apoiar as duas mãos no chão e olhando num reflexo para a frente, parou, estático. Três pares de olhos vermelhos reluzentes observavam-no fixamente a dois palmos da cara.


- Que...? - Começou a indagar quando outros tantos olhos vermelhos de sangue se iluminaram nas trevas mais afastados. Depois outros, outros e mais outros. Dezenas, e logo centenas, talvez milhares de olhos como estrelas de fogo olhando para Tortúlio Menezes na escuridão abafada, que entretanto tinha já migrado a fúria anterior para puro terror moldado na sua cara.


Quebrando o silêncio aberrante, ouviu-se um chiar que logo ecoou num concerto desenfreado de chios ensurdecedores. O pânico invadindo-lhe a alma começou por se escapar num gemido rouco, transtornado, contínuo e crescente, formado guturalmente no fundo da garganta. Experimentava um terror nunca antes sentido.


Um grupo de olhos saltaram à vez na sua direcção. Tortúlio sentiu uma multitude de dentes cravando-se ávidamente na sua farta carne, deixou escapar um grito de dôr tentando ao mesmo tempo se desembaraçar dos invisíveis roedores. Tinha de fugir daquela loucura. Começou a correr na direcção da luz ténue que surgia de fora. Cada vez mais dentadas se alojavam pelo corpo já sangrante. Dois mordiam-lhe a nuca sem largar, tentou tirá-los enquanto corria e conseguiu agarrar um, eram enormes como coelhos!


Arranjou forças que nem sabia ter e correu ainda mais quase tropeçando numa lápide quebrada no chão. Deixou cair os óculos e, desequilibrado, olhou para trás. Um mar de ratos e ratazanas acelerava ondulando na sua direcção num mar cinza caótico, chiando e saltando em sua perseguição. Recomeçou a corrida em pânico puro, perante tal visão de horror, deixando os óculos para trás.


Reco entretanto já não contava, tinha chegado até cem e não sabia mais. Já não ouvindo os anteriores gritos de fúria, levantou a cabeça e ficou pasmado ao vêr tal espectáculo. O senhor Tortúlio saltando entre campas, fugindo, caindo e olhando para trás, para algo que ele próprio não conseguia vêr.


Mas... o chão. O chão atrás dele movia-se como uma enorme sombra ondulante! Esfregou os olhos e reparou melhor nas centenas de pontos vermelhos piscando entre a massa cinzenta inquieta. Eram ratos! Uma quantidade enorme de ratos movendo-se como uma maré em fúria em perseguição do seu duro tutor!


- Reeeeeeeeco! Ó Reeeco! - Berrou o mestre em voz descontrolada. - Reco ajuda-me! Mata-os! Tira-mos de cima de mim! - Gritava histérico ele enquanto corria com duas dúzias de roedores agarrados ao corpo.


Reco Lopes manteve-se onde estava, sentado, aparvalhado com o que via. Tortúlio correndo na sua direcção em gritos de dor e pânico. Olhou para os ratos, depois outra vez para o mestre aflito quase às cegas sem os seus habituais óculos.


O velho corria como um louco e de repente, sem perceber, viu-se a voar sobre o chão. Aterrou mais à frente perto da cova aberta com o estrondo da cabeça a bater numa cruz de granito. Pôs-se de gatas meio zonzo no meio do caos. Olhou para trás. O sangue jorrando-lhe em catadupa dum enorme golpe na testa pela cara a abaixo. Por entre fios vermelhos do liquido incontrolável, pêlo e dentes só teve tempo de discernir uma perna estendida no lugar onde levantara vôo. A perna de Reco que agora era ultrapassada por ratos que nunca mais acabavam. Estupidificado constatava que nem lhe tocavam sequer. Em massa os bichos embateram em Tortúlio numa onda de fúria caindo como um peso morto na cova aberta acompanhando um grito quase sub-humano, arrepiante. Ratos e mais ratos saltando para a cova enchendo-a até cima num emaranhado de pequenas pernas, caudas rabiantes, corpos cinzentos e olhos vermelhos luminosos.


Reco levantou-se. Um sorriso leve pendia da sua face, gozava a observar aquele louco e inesperado festim de ratitos. Viu uma mão ensanguentada roída pelo pulso emergir da enchente que logo mergulhou novamente num frenesim. Não cabia em si de contentamento, fechou os olhos chorando de alegria.

Silêncio. Levantou as pestanas, lentamente, já não havia ratitos nem festim, só a cova e um silêncio rigoroso. Sorriu. Procurou a pá, pegou nela e foi-se embora, assobiando freneticamente.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Crónicas de coveiros: "2. Fome"

"Fracos são aqueles que não libertam a sua alma" - misticulava Recândido.

Recândido Luís Zacarias era seu nome completo. Coveiro de profissão, com muita honra. Levava em cima já 43 anos e a bonita fatia de 24 nesta árdua mas digníssima actividade. A pá era uma das poucas companhias que tinha. Nunca se tinha casado nem pensava fazê-lo. Pra quê? Chatices já as tinha que chegasse, não, nem pensava fazê-lo. Por muito que lhe azucrinassem a paciência, era feliz assim.

"Grandes são aqueles que olham na escuridão e vêm a luz..." - tornou a pensar. Sentado no caixão semiaberto, revirou a manga esquerda da camisa.

- Quatro menos um quarto, hmm, ainda tenho bastante tempo - murmurou em voz baixa enquanto carinhosamente contornava com o dedo o seu velho mas fiel Timex.

Esticou um pouco as pernas e atiçou com um galho a pequena fogueira que alegremente brincava à sua frente. As labaredas dançavam num ritmo inquieto proporcionando um espectáculo único de sombras em movimento no monte de terra que ali se erguia. Recândido fixou as sombras, quase apalermado, acompanhando depois as faúlhas que se lançavam endiabradas misturando-se com as estrelas.

"Existirão coisas mais belas? As sombras? A terra? As faúlhas incendiando o negro da noite?" - Poetizou.

Há muito tempo que fazia este ritual, era o seu único regozijo na vida. Depois de uma semana de intenso trabalho, dirigia-se ao seu tão amado cemitério e deliciava-se num mar de cerimónias que só ele conhecia. Sentia-se completo, feliz.

Voltou-se na direcção de um som surdo. Não era nada. O vento talvez.

Enclinou-se um pouco e com uma só mão apanhou e rodou a espetada uma e outra vez. Contava-se um, dois, três, quatro, cinco... seis, seis dedos num longo e fino espeto de aço. Ao lado, junto às pedras que rodeavam a pequena fogueira, jaziam mais quatro deles, encontravam-se já em estado de decomposição, inúteis, impróprios para alimento.

Fitou novamente as sombras, deliciado. Uma unha saltou, contorcionando-se em cima de uma brasa.
Começou a escrever no chão: OS FRACOS MORREM, OS FORTES COMEM-NOS.

"Ah! Lindo... poesia!" - Continuou: MUNDO IMUNDO, MUNDO DE FRACOS. MORREI! MORREI TODOS! E EU OS COMEREI!

"Justiça poética. Lindo!" - Pensou satisfeito enquanto se levantava.

Virou uma vez mais a espetada e dirigiu-se lentamente para o outro lado da fogueira. Puxou os cabelos negros para trás, tinha de os cortar um dia destes. Não tinha tempo. Prendeu-os numa borracha tirada do bolso atrás da nuca. A pele da face, pálida como Lua, esticou-se num sorriso breve. Apetecia-lhe novamente praticar exercício. Mirou para o chão e num só gesto apanhou a catana que ali se encontrava espetada ferindo mortalmente a terra mole. Estudou-a.

"És tão bela quanto a pá, juntas espalham a luz onde existe apenas escuridão!" - Os olhos brilhavam, quase faiscavam.

- Mãos à obra... - sussurou.

Junto ao monte de terra erguia-se ao alto uma longa vara. Nela empalado, um corpo pendia, já várias vezes esquartejado. Nu, totalmente nu. Era um homem de meia estatura, meia idade, com aspecto de estar enterrado à poucos dias. No meio da cara várias perfurações desenhavam um quase R, fruto de um anterior treino de lançamento de catana.

Recândido, orgulhoso de sua pontaria, gemia endiabrado, sorrindo e contorcendo-se sobre si mesmo, tinham sido anos de prática. O cheiro nauseabundo não o empedia que avançasse sobre o corpo disforme, pelo contrário, era perfume para suas narinas. A putrefacção atraía-o, simplesmente.
Deliciado, lançou a longa lâmina: mesmo no meio do pescoço rachando-o a meio. Retirou-a e em golpes firmes e precisos começou a dilacerar a coxa direita. Estocada após estocada, carne e osso saltando. Recândido gemendo de gozo. Gargalhadas loucas explodiam entre mordidas de beiços. Mais carne. Mais osso. A perna cai.

Suando como um animal, estudou atentamente o objecto de seu prazer. Ergueu lentamente o facalhão, lambeu-o.

"Longe vão os tempos da fome, da fome, maldita fome" - baixou a cabeça, fechou os olhos, gozando o momento. Um farrapo de carne fria como gelo escorreu-lhe pelo braço abaixo.

Minutos passaram. Os olhos abriram-se, voltaram-se na direcção de outro som surdo... o vento? Talvez. Ficava paranóico, tinha de se descontrair mais.

Pegou na perna pelo pé e sentou-se novamente no caixão, perto da fogueira.
Entretanto a espetada ficara pronta e com a mão livre retirou-a, deu uma dentada no primeiro dedo da fila deleitando-se com o sabor. Cuspiu um pedaço de unha que teimosamente tinha resistido ao lume. Pousando a iguaria, retirou um espeto maior que anteriormente colocara no caixão, enfiou-o no membro recem esfacelado e colocou-o por sua vez sobre a fogueira apoiado em dois suportes.
Outra dentada.

Novamente, retirou uma tigela de molho das entranhas do caixão e, com cuidado, começou a regar a perna, rodando-a cautelosamente em cada movimento. Pousou a gamela e deitou-se sobre o caixão, exausto. Adormeceu.

Sonhou com demónios a dançarem sobre fogueiras. Em volta, dezenas de corpos em estacas como a dele, esquartejados, mutilados. E ele dançava com eles, feliz. Comia, dançava. Amava com os demónios, ele próprio era um.

Acordou sem abrir os olhos. Um sorriso violento esculpia-se na sua cara. Como era feliz. Sentiu o corpo gelado e dormente, estava frio, muito frio. Abriu um olho... mas já era dia!
Levantou o pulso, estranhamente, quase não sentiu o braço: seis e trinta e três! - "Ó Diabo!"

Fez um esforço para se levantar mas não conseguiu. Tentou de novo em vão, frustrado.

"Que se passa?" - Pensou cansado e fustigado, o frio agudo tornava-lhe o corpo cada vez mais dormente...

"Se não me despacho, as pessoas começam a aparecer e estou perdido." - Sentiu o corpo mais entorpecido ainda, não era normal, afinal não era só o frio.

Levantou um pouco a cabeça e reparou na sua própria catana espetada no peito, atravessando-o até ao caixão. A pá na barriga, esventrada.

"Mas que..." - aterrado começou a desfalecer.

A cabeça tombou-lhe, pesada como tudo. Quase a fechar os olhos sentia a vida a escapar-se-lhe. Reparou então no vulto que se encontrava ao seu lado. Abriu mais os olhos num esforço terrível. Era uma mulher, de meia idade, um ramo de flores morria em suas mãos, contrastando gravemente com as vestes de luto. As lágrimas caiam-lhe em jorros desenfreados, imparáveis. Sua face envolta em raiva pura, ódio duro.

Escuridão...

-o-

Afinal a morte era assim, que estranho. Escuridão. Só escuridão. Recândido já não se sentia dormente, olhou para seu corpo, via-o, brilhava e mais esquisito ainda, estava inteiro. Já não percebia nada, só via escuridão à sua volta. Não. Além...uma luz a aproximar-se. Mas, eram demónios! Os seus demónios!

- Grandes são aqueles que olham na escuridão e vêm a luz! - Berrou, louco.
Treze demónios erguiam-se à sua frente, não dançavam, não se mexiam. Atrás deles, uma vara contorcia-se espetada num chão que não existia. Todos eles com sorrisos macabros, babando-se entre dentes. Todos eles com facalhões enormes, reluzentes. Todos eles...olhando esbugalhados...para Recândido.

06.11.97

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Crónicas de coveiros: "1. Ganância"

Raios! Era a 3ª vez essa noite que partia o cabo da pá. Já não se fazem como antigamente! Fui até à carrinha, substituí o malfadado e continuei, faltaria talvez um metro, mais coisa menos coisa. Com o suor abundantemente a afogar a camisa e a terra espalhada pelo cabelo e cara devia estar bonito, um verdadeiro bicho saído dum filme de terror. Enfim, isto não é trabalho para um tipo culto como eu, Francisco Diosteles Mateus.

Rai's partam a terra dura! Terra e mais terra. E depois a lama... a lama e a droga das pedras! Todas as noites de profanação dizia isto, e tantas noites já tinha passado assim. Agora claro, era diferente. Desde que o tio tinha desaparecido à 7 meses atrás que não mais me tinha dedicado a este tipo de "actividade". Sim, esta ia ser a derradeira noite a desenterrar um maldito caixão.

Tá quase, devo estar mesmo a bater com a pá no caixão. De esguelha vi um mocho curioso empoleirado numa das cruzes dos jazigos. Ah, parece que já sinto o cheiro da madeira húmida. Mais umas pazadas e de certeza que o familiar baque surgirá do fundo da cova.

Entretanto, descansar é preciso. Cavar um túmulo desta envergadura não é brincadeira nenhuma, ainda bem que ainda não perdi o jeito. Apoiado na maldita pá, aspirei umas lufadas de ar fresco e continuei."

"Op Op Op!" - Ritmava-me a mim mesmo em voz baixa. Era um vício adquirido nestes anos todos de escavações. - "Op Op!"

O meu tio e patrão, obrigava-me a fazer este tipo de trabalho todas as vezes que era enterrado no dia anterior um defunto com valores significativos. Eu, claro, protestava, mas não adiantava nada. O filho da mãe ameaçava-me logo com o despedimento imediato, sendo eu sobrinho ou não. Isso eu não queria, claro, também não sou nenhum estúpido. Afinal coveiros há muitos.
Só no último mês que se fez esses ataques à mais de meio ano atrás tinham sido mais de 20 escavadelas altamente lucrativas. A maior parte das vitimas eram velhas raquíticas da "haute societé", aquelas das quintas de familias ricas. Eh! As putas das velhas julgavam que iam usar as jóias no outro mundo para impressionar as almas penadas "jet set". Parvas! Tava mesmo a vêr o porco do tio a metê-las no cofre que escondia na agência e eu... eu com 50 míseros contos ao fim do mês. Em contrapartida o velho acumulara uma verdadeira fortuna nos últimos 40 anos.

"Ah! Ah! Idiotas!" - O pessoal da vila lançava palpites para o ar acerca do seu desaparecimento. O dele e o do famigerado cofre. Sabiam da sua fortuna porque o pobre diabo gabava-se de ser o homem mais rico das redondezas, contava e multiplicava-se em histórias de jóias e ouros herdados que guardava meticulosamente num recheado cofre. Claro que só eu sabia da verdadeira histórinha, era um caldinho muito bem confeccionado pelo velhadas. E para o Francisco? Sobrava alguma coisa? Calos! Nem desviar alguma coisa podia, o gajo tinha tudo em inventário post mortem, Raios o partam!

Bem, o merdoso do velho é que não me ia lixar mais a cabeça. Amanhã mesmo, dou a agência por falida e desapareço de cena. Sim, porque esta bosta de vida não é para mim, eu sou culto, inteligente, bem parecido, mereço uma vida folgada, de cavalheiro. Não é à toa que o pessoal da vila me apelida de "Xico Maneirão", só não gosto é quando a canalha me chama de "Xico Covão". Mas tá bem, de qualquer maneira os fedelhos malcheirosos não irão mais me pôr a vista em cima.

"Homp!"

Ah! Finalmente!
Agora é só retirar a terra que falta e será a última... e derradeira profanação! - AH! AH! AH!...

-o-

Os miúdos que se encontravam escondidos por trás da capela do cemitério tremeram quando ouviram as gargalhadas insanas do homem que se encontrava 30 metros mais abaixo. O mais pequeno, sardento e com ar matreiro desafiou o outro:

-Então agora é que queres ir embora? Agora que o maluco vai tirar o morto?

-Não! - disse o maior indeciso e ainda a tremer - a...agora vamos ficar.

Observaram então estupefactos o louco içar com cordas um caixão feito de madeira simples e corriqueira. Pousou-o ansioso no monte de terra que tinha extraído da cova, ficando a grande e mórbida caixa de esguelha mesmo virada na direcção dos dois pequenos. Uma mancha molhada tingiu e escorreu pelas calças do mais minorca.
O pé direito do homem enclinou-se para trás ganhando balanço.

-Filho da mãe! - Gritou, pontapeando o tampo com força. Com o impacto, este saltou e caiu para o lado. Ao mesmo tempo uma cabeça anteriormente decapitada foi cuspida e rolou até embater numa lápide. No topo do cranio estava bem exposta uma grande fenda que descia até aos orifícios onde em dias mais felizes se encontravam os olhos.

Perante visão tão aterradora, os miúdos fugiram soluçando e tropeçando até desaparecerem por entre as campas.

O homem, esse, parecia Lúcifer em pessoa. Deu uma última macabreante risada e baixou-se para erguer com enorme esforço um velho cofre, escondido no fundo do caixão.

23.09.97